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Cursino e seu curso

  • Foto do escritor: João Barros
    João Barros
  • 13 de jul.
  • 3 min de leitura

Atualizado: 20 de jul.


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Acervo pessoal


Cursino, e suas longas calçadas com cheiro de neblina


Cursino e seu curso


A rua de amoras


De quando em quando, a sombra dos anos primordiais volta rodeada por uma luz mais forte ou mais fraca, carregando consigo uma espécie de epígrafe pálida de um passado morto que, como toda coisa morta, recusa-se a perder seu mistério.


A rua de amoras é o início de tudo. O início das memórias coletivas. Subíamos a longa calçada da fábrica cheia de amoreiras rumo ao Valentim, ao Martha, às escolas públicas da Cursino e da Água Funda, sentindo o cheiro de neblina matinal e do sumo esmagado das amoras, roxo-sangue-pisado com seus tons fantásticos, tons de Dario Argento quando cruzados com as placas de caveiras feitas para assustar crianças que ousassem subir as grades de uma rede elétrica que percorria a esquerda de todo o trajeto. 


Nossas mãos minúsculas enrijeciam geladas no frio das 06h30 e nossos corpos, embrulhados em 4 suéteres, 1 ou 2 blusas de lã, 1 jaqueta e 2 calças, tinham para a mobilidade a mesma relação que temos com o impossível. 


Foram dias banais aqueles, dias do não-tempo lambuzados de modo quase terrível com a atmosfera de um sonho inconveniente. A mesma atmosfera de sonho nas festas de aniversário, festas de Cosme e Damião, Natal e Ano Novo; que faliam um pouco mais nossas famílias pobres e desgraciosas. Bolos floresta negra distribuídos para uma procissão de amigados, paçocas de rolha, salgados oleosos vendidos a cento, garrafas de vidro de 1 litro de Coca-Cola e Guaraná Antarctica, chester levemente ressecado, arroz com uvas passas e maionese. Mulheres com calças de cós alto e tiaras de pano nos cabelos dançavam no quintal sozinhas, respirando do fardo materno enquanto nossos pais – homens carecas, de mullets cacheados e com caras de crianças felizes pela abundância de cerveja barata – conversavam próximos aos engradados de Brahma com a mesma irresponsabilidade e expectativa com as quais conduziam pequenos comércios, oficinas, serralherias e perdiam membros em metalúrgicas. Balão estourado com cigarro que espalhava balas de iogurte e meia dúzia de chocolates bis em chãos de piso frio. Dois casais evangélicos, amigos da família, constrangidos, e que pareciam fazer um esforço enorme para lidar com a degenerescência da classe média baixa paulistana na qual também estavam entranhados.


Estávamos todos entranhados e os dias de festa e os dias comuns tinham cheiros praticamente idênticos. Mais ou menos excitação, mas o mesmo odor mesclado de neblina, oficinas, amoras, sonho, verniz, espera e inconsciência.


Fantasmas de algodão


Em uma das muitas semanas que já se foram e que retornam com as novas cores que fustigam o carrossel da eternidade da memória, acordo de sonhos intranquilos pensando nas irmãs que partiram bebês. Engano-me, havia uma espécie de tranquilidade outra própria da história pessoal que já se transformara em literatura.


Fragmentos fundantes: 


Pergunto para minha mãe se aquele lugar, o cemitério, era o céu. Cemitério que hoje, nesse continuum tear da rememoração, carrega as cores de um negativo de filme e remete-me a Bogdanovich. 


Cheiro de alfazemas-cabelo-de-recém-nascido que exalava da cabeça de Daiane. Acho que seria mais velha que Miguel, mas talvez eu esteja enganado. De fato me engano, Miguel mais velho por um fio. 


Velas acesas para as recém nascidas flutuantes em quintais da Cursino. Peço ou penso que pedi para tirar o algodão das narinas da irmã-bebê morta para que ela possa respirar. Lembro dos olhos de minha mãe. Lembro que achava meu pai muito bonito.


Diana, a irmã mais velha que não conheci e de quem não esqueço. Talvez tenha me dado conselhos sobre a lógica que não existiu e que essencialmente existe. Engano-me, a conheço. E talvez minha mãe tenha dito que sim, que aquele lugar era o céu. Há crianças lá. Que me perseguem e me cobrem como fantasmas de algodão. 


Tout est beau, mes sœurs.   

 
 

©2023 por Revista Lenta

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