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Diários de Buenos Aires

  • Foto do escritor: João Barros
    João Barros
  • 20 de jul.
  • 4 min de leitura

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Acervo pessoal


A costura rumo ao passado ou No passo de Buenos Aires


As horas, agora, são só as passadas. Meu olhar turvo, embaçado pela luz da memória, monta um quadro torto de duas viagens a Buenos Aires, uma há 14 anos, outra há 6, talvez 7 invernos. É muito tempo, mas o que me interessa agora é a costura rumo ao passado.  


Buenos Aires não é uma cidade


I


Visto aquela camisa branca, com dezenas do que penso serem âncoras de navios, uma touca azul com um pompom gigante, calças amarelo-cor-de-barro e sapatos quase vermelhos, quase espetaculares. São nove da noite, jovens punks de cabelos coloridos andam à minha frente, rumo, acredito, à estação Scalabrini Ortiz. Também estou andando pra lá, com meus olhos cansados e idosos aos vinte e quatro anos, com minha calvice avançando precocemente, com minha alma ainda não totalmente pronta para enfrentar uma noite longa. Oh, Deus! Como meus olhos estão mortos, carregando todo o peso de uma madrugada não dormida. Nunca consigo dormir em viagens, fico sempre com a sensação de que dormir, quando se está viajando, é um desperdício. Meu desejo é ficar caminhando, caminhando, como um desesperado em busca de algodão-doce. Aqui, quase todas as caminhadas foram vespertinas, debaixo de um céu vermelho com cheiro de verão. À noite faz um pouco de frio. Nada absurdo, mas o suficiente para usar uma touca sem parecer ridículo.


II


Viajar também faz-me pensar nas coisas mais comezinhas da minha vida. Caminhando com minha então companheira pelo cais de Puerto Madero, em uma de nossas últimas caminhadas nesse lugar e já defronte as ranhuras de um dasein que se desmancha, penso nos panfletos que recebi no saído do metrô da Vila Mariana, antes de ontem. Penso nas calçadas do bairro e nas árvores que foram quase todas podadas demais no último mês. Penso nos meus vizinhos – e nem gosto tanto dos meus vizinhos. "Será que está tudo bem com aquele garçom da Santa Isabel? Ele que sempre foi meio maluco e que vive dando cano no trabalho?", "Como andam os velhinhos do Cambuci nesses dias em que não estou lá para olhar por eles? Como andam os velhinhos que não morreram de gripe ou de um tombo derradeiro no banheiro". São essas coisas que me surgem no meio de uma visita a um museu, quando olho para o céu dos nativos, quando caminho por um bairro para sempre desconhecido. A experiência estrangeira é sempre um espaço para a transcendência meditativa a partir do prosaico. 


III


Em um dos passeios, estou ao lado do poeta chileno que caminha sempre bem rápido. Ele me conta, com certo orgulho, que vende pequenas quantidades de maconha na faculdade de música que cursa em Santiago e em seu desespero para soar junky, de tão obstinado, parece quase autêntico ou tanto quanto a juventude pode ser. Seu maior trunfo é demonstrar real interesse por aquilo que o interessa e isso, para mim, sempre foi muito cativante. Nesses quatro dias em que nos conhecemos, conversamos sobre Rachmaninoff, sobre o possível suicídio do Chet Baker, sobre Satie, João Gilberto e Philip Glass. Em certo momento da noite, ele me pergunta: “Why don't we run naked through the streets?”. Conversávamos em inglês, pois eu achava o cúmulo emular um espanhol que não domino em terras portenhas. Seu olhar é distante, sedutor e caminha entre o gelo fino da profundidade e da impostura. Era mesmo um beat perfeito. Emulava como um beat. 


IV


Voltamos a Puerto Madero no último dia da viagem. Foi bonito. Idealmente, é um bom lugar para se encerrar tudo enquanto ainda há amor. Mas, na vida, nada se encerra idealmente. Antes da última volta no cais, um casal de artistas nos julgou pelo passeio burguês. Os julguei pela ingenuidade e pensei nas camas feitas de dinheiro de Don Draper.


V


Apaixonei-me à primeira vista pela Sheree, a australiana que dividia o quarto comigo junto de outras 10 ou 12 pessoas de todos os lugares que minha vista alcançava nos mapas. Lembro-me do casal de ingleses membros do Partido Verde britânico. De um francês fã de jazz com quem acabei perdendo um passeio para um inferninho em que, salvo engano, havia dixie e canções dos anos 20. Do brasileiro insuportável que tratava discussões filistinas sobre Maradona e Pelé. Mas próximo mesmo, fiquei dos jovens israelenses que usavam camisetas tie dye, ouviam música eletrônica o tempo todo, trouxeram skank da Holanda e nunca haviam comido um cheeseburger por razões de fé – comeram, e se decepcionaram; da moça de Hong Kong que conversava comigo sobre Sigur Rós e Bjork; e de Sheree, cujos cabelos pareciam cortinas de veludo e cujo entusiasmo era maior que a vida. Não tivemos nada, tínhamos uma vida afetiva que nos esperava – em pedaços, a de ambos, mas que ainda estava lá e que merecia a atenção de dois monogâmicos incorrigíveis que éramos. Não, não tivemos nada, mas dançamos tango sabendo que poderíamos ter tido tudo. 


VI


Havia um cronograma imenso e, tirando a El Ateneo e o Café Tortoni, que visitei na primeira vez que pus os pés em Buenos Aires, não havia visitado nada. Eram perspectivas distintas de viagem: flanar ou absorver, eis a questão?


VII


No que elas se cruzam, as viagens? De certo, no sentimento de que são muito belos, os argentinos. Na percepção, que tive pela primeira vez, de que ali seria um lugar que viveria por gosto fora de São Paulo. Na captura de uma certa experiência, de uma mística de algo que não se move, que parece estar fixo no tempo ou onde o tempo não existe. Talvez o tempo não exista em lugar algum e Buenos Aires nos faz se dar conta do óbvio. Buenos Aires não é uma cidade, é um quadro na parede da nossa renascença.


 
 

©2023 por Revista Lenta

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