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João Barros

Notas do passado ou As mães e a revolução


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"Haverá na terra algo sagrado ou algo que não o seja?", Jorge Luis Borges em O livro de areia


As mães e a revolução


Em casa. Três ou quatro da tarde. Aquele horário em que até Deus fica com preguiça de viver e tira um cochilo depois de fumar um cigarro ou comer algum doce meio excessivo, como goiabada ou doce de amendoim de bodega.


Ouço uma mãe gritando para o filho:


"Fulano, vem aqui pra apanhar."


É um grito sem vontade. É quase uma piada. Me pego a refletir sobre se as mães acreditam mesmo no poder argumentativo de uma frase tão ridícula. Eu já ouvi isso e acho que não, que elas não acreditam. A ordem, penso, é uma espécie muito particular de ato de piedade. Elas não querem realmente bater, então exprimem um mandamento que, se cumprido, será muito humilhante, porque no fundo acreditam na dignidade de seus rebentos.


No fundo, as mães dos subúrbios adoram criar insurgentes de coração anarquista; pequenos indômitos que crescerão prontos para instaurar a revolta do proletariado, quebrando a coluna de uma sociedade opressora.


Sim, em toda mãe solitária que descansa fumando nas janelas de apartamentos e nos quintais de sobrados de todos os bairros distantes do mundo há uma amante de Maiakovski, uma frequentadora do Cabaret Voltaire, uma leitora de Tristan Tzara.


O grito: "fulano, vem aqui pra apanhar", nada mais é do que a expressão do irracional em um lindo poema dadaísta.



Estrangeiros do tempo



Velhinhos tímidos, com belos suéteres confortáveis e calças de sarja bem cortadas leem jornais no metrô. Idosos com cara de idosos que ainda leem jornais com seus olhos quase transparentes e quase mortos a caminho de algum hospital. Estão a caminho da morte e a observam com espanto e desejo.


Claro que as velhinhas coloridas também estavam por lá. Espalhafatosas e envolventes, sonhando com seus trinta anos.


Os metrôs transformaram-se em casas de repouso, em asilos, enchendo-me assim, da melancolia curiosa dos estrangeiros do tempo.


O homem sério


Ele só recebe em dinheiro e parece não ter telefone no estabelecimento. Sai para almoçar ao meio-dia, meio-dia e trinta, e volta às uma, uma e trinta. Jornais para os fregueses. Cadeiras de madeira. Fala pouco – ou fala pouco comigo. Não devo ser lá muito interessante para um senhor que exerce sua profissão há sessenta e poucos anos. Dobro do tempo que tinha de vida quando escrevi esse esboço. Eu, com minha cara que habita uma região indefinida entre a seriedade e a perdição. Faz o trabalho com muito asseio. Passa algodão embebido em álcool nas regiões onde caminha com a navalha. Chega a arder o pescoço. Ardem as narinas. Talco. Uma loção, que me é agradável, que me faz pensar em velhice, eleitores de João Goulart, fumantes da década de 40, lojas de móveis de segunda mão e William Buckley Jr e conservadores que sabiam se vestir. É um barbeiro. Um barbeiro real, acanhado e sério, como todos os barbeiros reais. Honesto com as coisas de seu trabalho. Que cumprimenta os comerciantes vizinhos. Que sorri para os amigos. Que se constrange diante da mudança. E que vem de um tempo que parece sugar-me, impelindo-me, incessantemente, para um passado que não é meu.


Tia gelada. Sorvete de nuvem


No meio do caminho tinha uma sorveteria velha.

Tinha uma sorveteria velha no meio do caminho.


Sorveteria sem nome, com paredes cinza-cansativas, pinturas de aniversário infantil no interior do estabelecimento e aquelas decorações de lojas de artesanato que vendem plantas de plástico, panos de prato e placas de madeira que incitam o alcoolismo. No refrigerador, marcas populares como Jundiá e Ice Lips que, vez por outra, venciam meu desejo por açúcar nos subúrbios. Lá fui uma vez. Sorvete com gosto de plástico, melaço e nuvem.


A sorveteria fecha de modo repentino semanas depois. Chego a pensar que seria definitivo, que se transmutaria em um bazar ou em alguma lojinha com roupas floridas, mas foram só alguns dias. Reabriu reformada.


Há uma nova sorveteria no meio do caminho.

Agora tem nome.


Ou havia. Chamava-se Ice Tia.


Suzano e a modernidade


Uma cidade escura. Uma cidade escura com postes antigos e simpáticos e charmosos e não arrogantes, com suas luzinhas amarelas derramando sépia nas calçadas. Postes assim me despertam fascínio, tanto quanto faróis marítimos ou a grande literatura introspectiva. Mas não nessa cidade, não nesta cidade escura na qual caminho em busca de uma amizade perdida.


Há coisas simbólicas a serem relatadas, mas pouco me estenderei – falarei de uma ponte alta, vertiginosa, insegura, um chamado para morte. E é isso. Estamos em uma cidade escura que nos chama para a morte.


Uma cidade escura que se coloca como um contraponto. Modernidade dentro de um mundo pós-moderno. Quadro fixo na parede. Globo de vidro habitado por papais-noéis e neve e solidão imóvel.

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