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João Barros

Peço desculpas, mas preciso mesmo falar sobre Adam McKay


Jaap Buitendijk, © Paramount Pictures


Se a postura de conferir mais crédito ao próprio trabalho do que a opinião pública tende a oferecer a um artista no mínimo um certo charme, em contrapartida, poucas coisas são mais irritantes na arte (e na vida) do que alguém tentando convencer a todos sobre sua própria relevância.


Adam McKay ganhou, com alguma justiça, esse epíteto de pé no saco quando passou a se dedicar ao tal do cinema sério e largou de canto a tão enjeitada comédia mais ou menos pastelona e blockbuster através da qual se notabilizou no cinema depois de uma curta passagem pelo Saturday Night Live entre 2000 e 2001.


O problema, claro, não foi o movimento em si – de Jerry Lewis à Adam Sandler, uma série de comediantes e de cineastas com trajetórias bem-sucedidas na comédia se aventuraram pelos caminhos do drama com filmes de maior ou menor sorte – mas há um desespero um tanto aparente em McKay para demonstrar que ele, vejam só, é um grande diretor, um verdadeiro artista capaz de produzir (ai, meu santinho) cinema de autor e de não sucumbir à lógica bestial do entretenimento que mói talentos e vende almas em troca de bilheterias monumentais e obscenas. Um desespero que transmite uma ansiedade irritante. De fato, irritante.


Para entendermos o fenômeno McKay e até que ponto é justo que o consideremos esse senhor quase tão insuportável quanto um palestrante motivacional ou o empreendedor motivado que ele, com razão, critica em seus filmes mais recentes, me parece importante delimitarmos alguns pontos.


O primeiro: McKay fez só três filmes dentro desta sua incursão ainda jovem pelo, digamos, cinema sério: The big short (A grande aposta) (2015), Vice (2018) e Don't look up (Não olhe para cima) (2021). Por outro lado, são também seus três últimos filmes e, se os somarmos à pré-produção Bad Blood, tudo indica que McKay veio ao mundo do cinemão autoral para ficar.


O segundo: embora com uma retórica e um universo temático mais ou menos semelhantes – nos três filmes, temos a exposição (geralmente feita por algum herói/heroína idealista) de escrotidões advindas de núcleos de poder (político, econômico, coercitivo) e construídas a partir de relações usualmente maniqueístas nas quais alguns desalmados dos infernos estão (por ganância ou ignorância ou convicção petulante), ferrando ou querendo ferrar com um bom quinhão da humanidade enquanto correm atrás de seus interesses –, os filmes chegam a resultados um tanto diferentes.


The big short é um bom filme tanto quanto um bom filme da safra recente de Spielberg; dos filmes que alcançam aquele ponto de mediania entre entretenimento agradável e em alguma medida esquecível. Com um ritmo interessante, lhe cativam a seguir a trama e se enquadrariam bem uma sessão da Tela Quente ou de Temperatura Máxima. The big short é o Catch me if you can (Prenda-me se for capaz) de Adam McKay – e com um elenco melhor, mesmo considerando a atuação quase sempre acima da média que DiCaprio também entrega na obra de Spielberg.


Aliás, a escolha e a direção de elenco são virtudes incontestáveis dos filmes de McKay desde os tempos do primeiro Anchorman (O âncora: a lenda de Ron Burgunby) e está presente até no abominável Vice – não me lembro, aliás, de já ter feito tanta questão de demonstrar meus sentimentos de rejeição por um filme em um cinema como fiz com Vice, incluindo uma mise-en-scène ridícula em que saí da sala bufando feito uma criança antes do fim do filme (ainda que tenha ficado próximo da entrada e visto, entrecortada, a cena final em que Christian Bale encena a icônica e abominável entrevista para o USA Today do vil, determinado e desprezível, Dick Cheney).


E para falar de Vice, preciso fazer um corte no tempo e pular brevemente para Don't look up. O fato é que eu só fui entender plenamente meu desconforto com Vice depois de ter assistido Don't look up e, mesmo gostando desse último, cheguei à conclusão de que Adam McKay é um diretor, em essência, incapaz – ao menos até o momento – de maiores sutilezas. Seu discurso é direto, seus recursos narrativos são primais, muitas vezes grosseiros e envoltos em uma visão de mundo dualista que parecem saídos dos olhos de um jovem de inteligência mediana que se deu conta de sua capacidade de interpretar razoavelmente a realidade que o cerca. E McKay está encantado com isso.


Fato é que não se fazem ou não deveriam se fazer biografias a partir de visões tão estreitas. Quem se propõe a ler um indivíduo – qualquer indivíduo – e a criar uma obra de ficção a partir dessa leitura, precisa ser capaz de se despir – ao menos por algum momento – de sua indignação e a combinar as camadas que compõe aquele personagem para a criação de algo com um mínimo de riqueza simbólica.


Uma biografia e, via de regra, obras de ficção com tamanhas pretensões precisam ser mais do que um manifesto de civilidade. Além do mais, eu não preciso de um longa de ficção de 130 minutos para me contar a grande novidade de que Dick Cheney, ora, ora, foi um grande filho da puta – nesse sentido, um documentário de Michael Moore é muito mais efetivo, original, simbólico e divertido do que Vice e toda a sua carga de paternalismo intelectual e elitismo superficialmente esclarecido.


Sim, a questão da possibilidade de camadas de complexidade em uma cinebiografia de Dick Cheney é pertinente. Há simbolismo ou algo além do que se vê em um personagem tão asqueroso que nem faz questão de disfarçar sua vileza? Bem, ninguém obrigou McKay a tentar.


Há, para ser justo, uma tentativa ou outra de aprofundamento e elas se concentram principalmente no começo algo promissor do filme – a relação de Dick Cheney com sua esposa e mentora moral, Lynne Ann Vincent; a juventude de bully-caipira-beberrão-e-derrotado em Wyoming, alguns lampejos de maior cuidado na exposição da relação de Cheney com sua filha Mary, mas é só.


E mesmo esses lampejos caminham com uma pressa tão ansiosa em nos demonstrar – como se necessário fosse e como se fôssemos imbecis – quem está do lado certo da história e, no fim, o que resta é um eco de intelectualismo raso e cínico. Aliás, no caso específico de Mary Cheney – filha lésbica de Dick Cheney e que foi alvo de elocubrações políticas da própria família – o cinismo de McKay chega ao nível de uma baixeza cruel e ainda perde a oportunidade de se aprofundar em uma personagem realmente interessante – deslocada e, ao mesmo tempo, próxima que era do seio de uma família que serviu de modelo perfeito para o neoconservadorismo americano e para espírito de porco que se alastrou ainda mais no partido republicano da era Bush em diante.


Como contraexemplo, um filme muito melhor sucedido na tentativa de analisar um quadro em que o "bem e o mal" estão definidos de modo muito objetivo na realidade é o Marighella de Wagner Moura. Ao expor o que há de mais desumano em um regime ditatorial, Moura não desumanizou seus personagens, não suavizou traços/falhas de caráter de seus heróis, não eliminou as complexidades da luta armada e por isso mesmo é muito mais crível, complexo e rico.


Não se trata, nesse sentido, de não posicionar-se, mas de integridade intelectual e de oferecer rotas que nem sempre se enxergam no que já está posto. A arte política e a arte biográfica exigem muito mais do que convicções e Marighella alcança esse patamar com competência e alguns tons de brilhantismo.


Wagner Moura, com sua obra que beira o monumental, além de expor um retrato naturalista e honesto da ditadura, conseguiu construir um símbolo contra tudo aquilo que o Governo Bolsonaro representava. Mckay confundiu linguagem estética com meia-dúzia de pirotecnias técnicas e linguagem narrativa com um roteiro de obviedades sobre um período político dos Estados Unidos fartamente documentado por intelectuais mais profundos e inteligentes do que ele próprio.


P.S. Sobre pirotecnias técnicas de comediantes que se aventuram no cinema de autor, Todd Phillips, fez a mesma coisa no "quanto-mais-o-tempo-passa-mais-irrelevante", Joker (Coringa).


P.S.S. Outro exemplo de como tratar com mais complexidade de períodos históricos em que heróis e vilões são facilmente discerníveis está no ótimo Plan of Attack (Plano de Ataque), livro do jornalista americano Bob Woodward, que analisa o mesmo período histórico presente em Vice.



Collider


Um mundo perfeito para McKay


Mas, então, porque Don't look up funciona? Porque seu tema macro são os efeitos de uma sociedade perdida na hiperconexão. Vivemos um período bruto, sem muito espaço para nuances e plataformizado no debate empobrecido das redes sociais. Um período que poderia ser tão inbiografável quanto Dick Cheney, não fosse o realismo direto e cínico de Adam McKay.


O cinema de Adam McKay – ao menos até o momento e por mais que ele tente ansiosamente nos convencer do contrário – segue não sendo grande arte*. The big short é um entretenimento fugaz e convincente sobre as ambições e últimos arroubos do capitalismo financista que se autocorrói; Vice é um desperdício em todos os sentidos possíveis.


Mas Don't look up, ao menos, tem o mérito da eficiência. O fato é que McKay parece mais confortável e parece saber do que está falando na sua badalada produção na Netflix. É quase como se o diretor de Denver tivesse jogado em um rolo de fita, como em uma boa edição do Globo Repórter, um recorte documental da selvageria digital de nossa contemporaneidade e da comunicação em um ambiente de fragmentação, dispersão e desespero psíquico.


Don't look up não é realmente criativo ou original – nas poucas vezes em que tenta, o filme se perde e cansa, frutos que são do infantilismo imagético de McKay – mas é acurado e até cuidadoso, tanto quanto um livro didático ou uma colagem podem ser cuidadosos, na construção do bióptico de nosso atual contexto social e político.


O presente é perfeito para McKay e é possível ir além na elegia a McKay: em um momento da história no qual políticos sequer transformam seu desprezo pela humanidade em um segredo de Estado, o discurso direto do diretor americano chega a ser necessário. Na era do jornalismo como entretenimento e das mídias digitais como balizadoras de um debate intelectual melancólico, o objetivismo de Adam McKay ganha camadas de metalinguagem distópica. Além disso, pela primeira vez em algum tempo, McKay foi genuinamente engraçado e algumas de suas gags soam como uma espécie de reconciliação com a comédia.


*A meu ver, o cinema de autor e independente de qualidade, nos Estados Unidos, caminha pelas mãos de diretores como Sofia Coppola e Harmony Korine, solipsistas que conseguem extrair beleza de nossa decadência kitsch.


Aos vencedores, a comédia


Comédia, aliás, em que Adam McKay foi brilhante. Sua linguagem bruta, seu sentimentalismo tolo e amável, o desejo pelo escracho e até seu paternalismo antiquado – que, dentro de sua nova retórica pseudoprofunda, em muitos momentos, se metamorfoseia no intelectual médio ranzinza que cobra passantes aleatoriamente apontando o dedo para suas caras – encontraram na comédia popular um terreno firme em que puderam se combinar de modo genuíno em algumas das realizações mais divertidas do entretenimento contemporâneo.


Junto, sobretudo, de Judd Apatow – possivelmente a maior força dos bastidores da comédia americana nos últimos vinte ou trinta anos – McKay foi uma ponte importante entre o humor dos anos 90 de Adam Sandler e Jim Carrey e o entretenimento sofisticado e atento às discussões políticas e sociais presentes de Aziz Ansari, Kristen Wiig e Lena Dunham.


Por alguma razão, quando ele mesmo cruzou essa ponte, decidiu fazê-la fora da comédia, ainda que com breve acenos e ainda que seus filmes sigam competindo enquanto comédias em premiações que caminham para irrelevância como o Globo de Ouro.


Nessa travessia complexa e errática, Don't look up é sua melhor realização. O presente faz bem para McKay e para sua odisseia contra o materialismo flácido, contra os palestrantes motivacionais, contra os empreendedores que tem algo a dizer. E por isso Adam McKay é necessário. Precisamos perdoá-lo. Precisamos perdoá-lo como perdoamos diariamente, a nós mesmos, por essa nossa bondade.









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