Diários chilenos
- João Barros

- há 6 dias
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Acervo pessoal
No rastro dos detetives assassinos: memórias do fim da juventude em Santiago, Valparaíso e Viña del Mar
There is this old man who spent so much of his life sleeping
That he is able to keep awake for the rest of his years
He resides on a beach
In a town where I am going to live
And I often ask him
"Are you lookin' for the mother lode? Huh?" No?
"No, my child, this is not my desire"
And then he said
"I'm diggin' for fire
Dig for fire, Black Francis
Minhas costas doem. Ontem fumei muito e sinto que, após vinte anos, preciso abandonar meus companheiros assassinos, meus camelinhos que dançam em sua fotossíntese as avessas e deixam meus pulmões secos como caroços de ameixa. É pena. Mas que fazer? São mesmo anos em que tudo vai-se embora. Fazia até tempo que não fumava tanto. Já quase sinto que é preciso deixar ir.
Nada disso passava pela minha cabeça naquelas semanas no Chile e até o logotipo do Camel ainda era bonito, eu acho. Viajava com minha então namorada, que saía do Brasil pela primeira vez e tinha muito mais motivos do que eu para visitar aquele país de transeuntes gentis com seus rostos andinos. Violeta Parra, Pablo Neruda, Júlio Cortázar e seus olhos felinos. Nomes e olhos que pouco se comunicavam e, ainda hoje, pouco se comunicam com meus interesses, sempre tão anglófonos, francófonos, tão pouco patrióticos de minha terra e da terra de meus irmãos no plano das artes e das letras e das coisas pelas quais, afinal, construo igrejas. Não para B. Faziam parte de seu jovem cânone. De modo que a viagem, de comum acordo, foi em grande parte por ela desenhada. Guiei-me pelo mapa do outro. E aqui está algo do que guardo.
Os detetives assassinos
Eis que estamos na belíssima casa encontrada por uma pechincha na Rua Concha Y Toro. É noite. Chuveiro quebrado com água fria que só consertasse no dia seguinte. Sangue de menstruação. O chuveiro continua meio merda, mas a casa é tão sublime com sua varandinha em que fumávamos e ouvíamos as conversas na rua de pequenos fervos. Quarto que carrega fantasmas acolhedores, mas antes de tudo isso, medo da turbulência ao cruzar os Andes. Que veio como prenúncio do pavor do voo de volta em que quase não entrei no avião com instintos premonitórios. Voo tranquilo toda vida que me fez questionar a validade das premonições nesse meu baile eterno entre a cruz e o pirronismo. Bem, encantadoras mesmo as casas de Neruda. Quase me dá vontade de ler, mas não avanço. Mas isso já foi bem depois da primeira manhã da viagem, com caminhada de sol a pino e mote con huesillo em quiosque de calçada. Passo os dez dias seguintes com dores de barriga colossais. Tenho tonturas nos museus e mal consigo me alimentar. Sorte que o café era fraquinho fraquinho. O chafé de minhas tias e meus avós. Apaixonados, jogamos em cassinos de Viña del Mar, vamos a praia de casacos, vemos gatos estirados em leguminosas, uvas e frutas secas em Valparaíso, tiramos fotos junto a estátuas de Cortázar, esse quase desconhecido cuja sedução me parece plenamente cabível. Meninas com saias acima dos joelhos e meninos com calças de malha indo para o colégio como nos tempos do educandário de Pau dos Ferros. Será que também tinham aulas de idiomas com freiras? O charme breve de juventude das quadras de Lastarria, em que tive minha última refeição no Chile, talvez a única em que tenha conseguido comer quase sem dor: sopa de cebolas, Les Assassins. Talvez o restaurante mais bonito que já fui. Garçom de olhos interessantes. Olhos assassinos e sedutores. Assassinos e sedutores como meus cigarros. Como os personagens do incrível Bolaño. Oh, existia, afinal, um elo com o Chile. Un hígado para Bolaño. Pulmones para João. Un estómago porque no aguanto más la sémola. Elo selvagem. Elo detetivesco. Eu perseguia algo no Chile. E o que eu perseguia? Pergunto-me, rememorando-me de uma resposta bem guardada quase que de pronto: eram os rastros do sol chileno que eu perseguia, os rastros de seus cachorros magros, das lindas bochechas andinas, do fim dos dias de minha juventude. Eram os rastros da paixão e do fogo. Era tudo isso que eu perseguia e foi isso mesmo que encontrei.

