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A menor cidade entre as grandes cidades

João Barros

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Semurb, divulgação


Memórias de uma juventude em Natal, RN


Decorei boa parte do repertório de Padre Zezinho, uma espécie de Renato Russo da renovação carismática, nas viagens de carro com meu avô, de Pau dos Ferros para Natal. Cinco horas e meia, seis horas, pois vovô não corria, e uma K7 de 40, 50 minutos repetindo ad eternum, um círculo infinito de ladainhas, causando-me um misto de profundo tédio existencial e de absorção da simbologia católica elementar, que, penso, me foi prenúncio do pendor para Camus, Sartre, para o ateísmo místico de Cioran, para a angústia sacra de Kierkegaard. Um certo Galileu me tocava especialmente. A Faroeste caboclo do padre mineiro que encantava vovó. Uma Faroeste caboclo melhorada.


Vindo de modo definitivo de São Paulo aos 12 anos e tendo mais ou menos aceitado a pasmaceira de viver no interior do Rio Grande do Norte uns três anos depois, Natal, naquela época, parecia-me a cidade ideal, a menor cidade entre as grandes cidades. Costumava repetir, naqueles anos de busca pelo desejo, que “Natal era perfeita porque não era nem pequena como Pau dos Ferros, nem grande demais como São Paulo”, como que tentando me convencer desse silogismo capenga, já que minha metrópole-obsessão parecia, enfim, inalcançável; como se nossos afetos fossem guiados por medidas geográficas.


Em que pese a fantasia, Deus, como Natal era estimulante naqueles anos. E bela, incrivelmente bela. Logo em sua entrada, o terror e o fascínio pelas grandes estátuas; minha imaginação profundamente religiosa flutuava em êxtase no colo dos Reis Magos. Pouco depois, Neópolis, as casas de minhas tias, o medo e a admiração por meus primos, com suas raízes tão mais fincadas que as minhas; os cigarros Sampoerna fumados nos pavilhões do Natal Shopping, as idas ao cinema, aos sebos, aos morros de areia; costas queimadas em Santa Rita, cheiro de sargaço, as pedras mais bonitas do mundo e as paixões desconhecidas nas curvas de Genipabu; areia no olho por semanas, bicho-de-pé no polegar de meu irmão, um passeio em um burrinho assustado; cururus, urubus, estrelas-do-mar tristes secando no sol, dor, a já profunda dor, diante da incapacidade de cuidar de todos os bichos do mundo; gosto de água salgada na alma, visões de morte, vida, pecado e perdão.


Fui, em Natal, talvez como todo jovem, inocente, estúpido, pretensioso e desesperado demais pela experiência. Não sei, só posso falar por mim, mas só na maturidade entendi o tempo e o mistério e a vulgaridade que nasce da devoção empírica. Havia, no entanto, paixão e desejo, forças anímicas fundamentais que se moldam e que desculpam a pressa da juventude.


Nos tempos tortos da filosofia – que amei e odiei e que, por fim, me trouxe colapsos nervosos – perdi-me entre personas. Havia a tessitura que dividia com jovens prodígios das humanidades na UFRN e nossos cigarros Camel; furtos de livros, Orson Welles, anarquismo, comunismo, existencialismo, planos de viagens, planos de vingança, o cinema clássico de Hollywood, Duchamp, Picabia, Pirandello, Ionesco e toda nossa arrogância, rivalidade, o ridículo, a delinquência, a ruptura, o afeto, o reencontro contínuo, a inspiração criativa, a admiração; amor que não se admite; o respeito em formação, a revolta, o amparo estrangeiro e a complexidade fundamental das relações familiares; os passeios em que experimentei todas as drogas do mundo com os amigos hipsters, emos e grunges; além da meia dúzia de conhecidos do hardcore que imitavam o Silvio Santos e faziam piadas já à época deprimentes e com os quais eu formava bandas ruins porque, bem, porque esse foi o caminho mais fácil que encontrei para me envolver com a pequena cena musical da cidade, que se concentrava nos arredores da Ribeira, bairro do cais pesqueiro de Natal. De fato era e tinha-se pressa.


Já me entendi com a minha memória da cidade, com a pressa que movimenta e, sim, que nos esfacela. Mas não é esse um movimento imperioso para a posterior edificação? É possível envelhecer sem ter sido jovem?


Não sei. O que sei é que, da lira distorcida de minha juventude, guardo o olhar dos Reis Magos, de minhas tias, primos, amigos, amores ligeiros e amor fundante, que por mim tantos afetos sentiram, como eu também senti, sobre tudo que lancei o olhar naquela cidade bonita e idílica, na menor cidade entre as grandes cidades.


   


©2023 por Revista Lenta

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