
Acervo pessoal
Sobre Pau dos Ferros, uma cidade feita de memória como todas as cidades
“Uma cidade, um campo, de longe são uma cidade e um campo; mas, à medida que nos aproximamos, são casas, árvores, telhas, folhas, plantas, formigas, pernas de formiga, até o infinito.”
Pascal, Pensamentos
Seria impossível não pensar em Pau dos Ferros quando visitei o Metropolitan, naquela cidade minúscula que se acha gigantesca, perdida que está em meio ao Alto Oeste Potiguar, em meio ao calor torrencial capaz de fazer adoecer almas fracas e conduzi-las ao cadafalso. Cidade minúscula que parece jogada no finalzinho do Rio Grande do Norte, como a última 3X4 de um álbum de figurinhas. Tudo grande. Tudo alto. Tudo tão diminuto.
Ocorre que meus campos de centeio foram feitos daquele calor específico formado pelo cheiro da cozinha e do pé de azeitonas roxas de meus avós, dos pães doces em formato de bonitos e macios tijolos vendidos por Teodoro na esquina de nossas casas (Vô e Vó no térreo; minha mãe, meus irmãos e eu no segundo andar do sobrado de piso frio que tanto aliviava os dias de mormaço), pelos olhares igualmente desconfiados e amorosos de minhas tias, olhos indígenas, ancestrais; pelo som do rádio do Fiat Uno de Vovô, sempre ligado na Rádio Cultura do Oeste, AM elegante que introjetava ainda mais o sonho vadio do jornalismo, pelas orelhas de pau e biscoitos assados, servidos sempre branquinhos, quase crus, fato que formou meu gosto pela confeitaria das padarias apressadas.
Era um calor tátil, o de Pau dos Ferros. Parecia melaço. Curiosamente, enquanto nosso sangue se transformava em um molho de cana-de-açúcar, quase não suávamos. A falta de suor às bicas nos tornava seres de paixão e, cada abraço, cada luta, cada pequeno afeto era, é e sempre foi essencial, lascivo, inocente, selvagem, onírico.

Li Salinger em outra cidade quente, mas é de Pau dos Ferros que me lembro quando penso em The catcher in the rye. Possivelmente porque, como Caulfield, por muito tempo, odiei aquele lugar que pode cumprir tão bem a função de maldito na sensibilidade de um adolescente. E, como Caulfield, hoje só sinto saudades.
Não há dúvidas de que todos nós somos sustentados, ao longo da vida, por um mito que nos direciona. Meu mito é o da metrópole. E não há dúvidas de que, por isso, sinto-me perdido diante de regiões pastorais, em que nada existe além do real, e todo campo aberto me faz sentir o peso de Deus. Tal qual Frank O’Hara, toda natureza só me é compreensível quando próxima de uma linha de metrô e poucos alívios são maiores para mim do que ver, em meio a lugares ermos que não conheço, conveniências AmPm, agências bancárias, geladeiras da Kibon, gondôlas da Elma Chips. A uniformidade industrial e da burocracia. Os artifícios da metrópole que me enchem de paz.
Em Pau dos Ferros, acumulei os primeiros rancores a partir de um sentimento de ruptura. Ruptura de uma adolescência urbana com suas danças de distanciamento e da vontade infinita próprias de São Paulo. Rancor pela perda de meus amigos, do amor original, das luzes de fascínio no trânsito noturno da Avenida Imigrantes.
Todo rancor nos faz ridículos e eu adorava recitar o “Canto de Regresso à Pátria”, de Oswald de Andrade, nas escolas em que estudei em Pau dos Ferros, sem sequer ter uma memória muito clara da Rua 15, que se confundia com toda a ideia de balbúrdia da qual eu sequer gostava e que eu já tinha e sigo tendo do Centro de São Paulo.
O nome Pau dos Ferros, que hoje acho de uma força poética bruta digna de João Cabral, me envergonhava. O tédio da cidade me era avassalador e insuportável. A brutalidade apaixonada dos adolescentes-já-tão-homenzarrões feria minha sensibilidade introvertida, feria a ordem das coisas do meu universo intelectualmente elitista. Pau dos Ferros foi o segundo dos grandes choques fundantes. Choque que, como em toda valsa analítica, teve seu próprio processo de assimilação que segue em movimento.

Tudo deve ter começado com Walter, a alma mais doce que já conheci. De certa forma, só passei a sentir algum amor por aquela cidadela e por suas praças amareladas e por seus pés de castanholas – Deus, como sinto falta de ver castanholas caídas nas calçadas por onde passo – quando conheci meu melhor amigo, quando descobri a possibilidade de compreensão íntima no outro, movimento que nos permite enxergar a vida fora da complexidade dos círculos familiares.
Pálido como um músico escocês e com cabelos tão lindos, Walter sempre me lembrou os judeus tímidos de Higienópolis que sempre me despertaram tanto fascínio na infância. Walter também me faz pensar em paisagens do leste europeu, no círculo de Bloomsbury e nos momentos em que o parnasianismo consegue ser sublime. Ele é como um amuleto autêntico. Raro todavida. E mais raro ainda pois, no meu garoto do brilho discreto, não há qualquer traço de afetação.
De modo que por anos fui injusto com Pau dos Ferros. Lá fiz teatro com a melhor professora de uma vida. Lá li Ionesco, Marx, Dalton Trevisan, Lispector, Nietzsche, os fragmentos de Heráclito. Lá soube da existência dos expressionistas abstratos, dos dadaístas, lá ouvi Chopin e o Nevermind deitado em nossa sala numa noite de brisa tênue e luz. Lá rascunhei os primeiros exercícios literários mais bem estruturados, acumulei imagens de poesia, apaixonei-me e namorei com uma malabarista, tive aulas com intelectuais densos, fiz meus melhores amigos e longas viagens com meu avô ainda forte e vívido, vi minha avó escrevendo seus longos diários com revelações da mística católica, fumei os primeiros cigarros, frequentei com Walter boas videolocadoras e vi os primeiros 5 filmes de Charlie Kaufman. Vi Billy Wilder, Sofia Coppola, Forman e, enquanto escolhíamos os DVDs, flertei com a balconista da melhor das locadoras. Conversávamos tomando Nescafé no ar gelado e tudo de repente parecia instigante e moderno. Vi ainda passarinhos, cabritos, sapos, seios, o sexo, a proteção da água-viva, a dor, a culpa, a alegria, o sofrimento, a vida, a beleza, o desejo, a paixão, o entendimento, a vertigem.

E vi, creio que em um livro de escola, o Autumn Rhythm (Number 30), de Jackson Pollock. De modo que seria impossível não pensar em Pau dos Ferros quando me sentei, por alguns minutos, de frente ao quadro de minha vida no The Metropolitan Museum of Art e todas essas coisas vieram à minha cabeça.
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“Sob a memória e o esquecimento, a vida.”
Paul Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento