Acervo pessoal
A Juriti não precisa ser caçada na memória. O eterno irrompe
Enquanto o Cambuci, de alguma maneira estranha, se desfaz e já vira rastro de caça da memória nestes últimos dias meus no bairro perdido que, como um acaso fortuito, se fez sinônimo de vida em mim, a Juriti segue imutável, tal qual um abrigo das contemplações possíveis. Imutável como diz o texto de Saulo Yassuda, um dos tantos que fazem loas a Juriti em suas paredes, as paredes do melhor bar do mundo.
Bem, Yassuda fala, com o recato jornalístico que nos é ensinado desde os primeiros instantes em que pisamos em uma escola de comunicação, “de um lugar quase imutável”. Mas que quer dizer quase senão insegurança? E o que são as escolas de jornalismo senão oficinas do recalque da subjetividade e cujo espírito lembra a pequena burocracia dos cartórios?
Yassuda assume o não-ser do quase porque lhe falta coragem para romper formalismos e talvez horizonte para sorrir diante das sentenças definitivas e do facto objetivo de que toda narrativa é subjetiva.
Coragem, lembra-me a noite chuvosa que cobre o Cambuci até onde meu ouvido consegue me carregar, que é uma das poucas coisas que me sobra, ou melhor, que renasce, neste ano em que me despedaço, me despeço, perco cavalos, pavões e horizontes.
De modo que não há porque fugir da verdade de que A Juriti é, indubitavelmente, imutável. Não é que não sinta o rio de fogo das mudanças heraclíticas. Hoje, por exemplo, está repleta de jovens, ou melhor, de adultos perdidos no caldo baumaniano que nos lambuza como abelhas enlouquecidas de desejo e de horror. Comemoram um aniversário. Parecem não saber envelhecer e talvez por isso venham a um bar de velhos que fará 70 anos no ano em que faço 40. É um motivo nobre, mas me aborrecem e, aqui de minha mesa, lembram uma revoada de maritacas góticas.
Piscas-piscas com suas luzes quase cegas 25 de Março, por sua vez, são tintas sazonais que já me agradam. Gosto do Natal e da maior tristeza do mundo com que ele me cobre desde os anos em que assistíamos Home Alone em uma das tantas casas de salas de piso frio em que vivemos na Zona Sul de São Paulo.
Mas, sustentando toda revolta heraclítica, há a seiva parmenídica. A Juriti é. Imutável. Tudo porque, para além do balcão de fórmica, dos garçons que permanecem décadas no bar como pêndulos elegantes e absorvidos pelo cosmos de suas mesas de círculos hipnóticos e oitentistas, do amor infinito que toquei no dia mágico em que seus portões estavam fechados e de toda a beleza e de toda a dor e de todo o sublime prosaico que aqui vivi, a Juriti tem alma. Alma, como tudo que é eterno, permanece.
Por isso, A Juriti não precisa ser caçada na memória. O eterno irrompe. E é disso que é feito o melhor bar do mundo.