O lugar da memória, a memória do lugar, o lugar na memória
- João Barros

- 26 de out.
- 4 min de leitura

Acervo pessoal
O que sobrará de vida entre a memória e o esquecimento?
“Entre a memória e o esquecimento, a vida”, Paul Ricoeur
I
30 e poucos quilômetros de estrada de terra. Fico me perguntando se algum dia hei de perder o medo de me perder dirigindo. Já dirijo de modo aceitável e a última vez em que bati o carro, o fiz no desespero de uma mudança de residência. Mas sigo com medo de fazer merda. Pequenas merdas que, no fim, me levarão ao cadafalso. Talvez porque siga não confiando na fração da memória que chamarei, aqui, de memória cotidiana para enfatizar que é na chave para abrir o portão depois de já ter descido as escadas que mora minha perdição. É na escolha entre uma via e outra rumo a pousada após visitar um restaurante pela primeira vez ou no aparelho que desentorta meus dentes colossais esquecido na mesa de outro restaurante pois o primeiro, aparte a cachoeira, oferecia um cozido que tinha cara de ser sem gosto. São esses lugares em que, muitas vezes, não encontro o que procuro – o cartão de crédito, o caminho de volta, o que vim fazer ali. É nessa memória comezinha que minha segurança para ser pai ou guardião de crianças é questionada e que o rastro do alzheimer me atemoriza. Isso posto, a memória do real – do trauma, do amor, do símbolo – essa não se perde. Essa segue sublime na construção da narrativa-existência e guarda cheiros, olhares, reprovações, o gozo do outro e sua negação, guarda a espera, sua dança madrigal e suas mãos venusianas e os seios mais belos em uma noite de estranhamento, o dia em que dei o dedo para vizinhas crentes racistas, a cachorra Madonna e a manhã (ou tarde) em que ela mastigou minha mão após alguma crueldade infantil, os olhos do gato, as cartas de minha mãe, a certeza da solidão e a busca, infinitamente rompida, quebrada, pelo pertencimento, as mordidas na orelha de cachorro essencial quando filhote, o espirro na cara da cachorra que segue comigo depois de um namoro terminado nos tempos da clausura, o dia em que meu pai deixou de nos amar, o dia em que fumei meus primeiros cigarros e a primeira vez em que desprezei alguém que me amava. De modo que reflito, desde que aqui cheguei para descansar por um fim de semana com os cachorros feito o bom burguês no qual estou me transformando, sobre o que me lembrarei desse lugar que ocupa um lugar tão marginal em minha vida. O que sobrará de vida entre a memória e o esquecimento?
O lugar da memória é o retorno. Mas retorno a quê? A própria memória – narrativa-existência; literatura de não-ficção entrecortada, que se ficiciona em si mesma enquanto é circundada por sensações e pelos olhos externos de cachorros, siriemas, deuses e Outros.
II

Em um exercício quase pretensioso – Como, afinal, investigar a raiz do real? Como perscrutar o enigma? –, suspeito que o que restará desse lugar quando então ele se tornar uma literatura pálida (pouco importa, sobre essa questão, se seu canto escrito será mais ou menos radiante), um já rastro geográfico de um momento de vida que se perdeu enquanto em si e que agora compõe meu instante-agora a cada releitura que traz consigo, justamente, os vislumbres do que restou, será, em ordem mais ou menos hierárquica:
A lembrança do cachorro magro na estrada perdida de 30 e poucos quilômetros de terra, seu medo, medo do humano que o abandonou em um fim de mundo que mal sabe se é São Paulo ou Minas Gerais, medo da vileza humana que talvez irrompa ainda mais nos cegos confins do mundo, as patinhas já escangalhadas e o desejo de confiar no estranho que lhe dá comida e chora por não conseguir assumi-lo, pelo medo de que os cães que passeiam com ele e que morreram seguros o estranhem, pela impossibilidade e pela eterna falta e que então chora mais um pouco ao se lembrar que esqueceu de dar-lhe água, disso lembramos pois lembramos de tudo para o que não há consolo;
A lembrança do trecho de solo vermelho em meio às montanhas esverdeadas defronte ao chalé;
Os olhos da siriema que lembram os olhos da mulher que amo quando abriu o bico em posição de ataque ao se deparar com minha cachorra; a cachorra que é pequena como uma bolacha mentirinha e que lembra os roedores vítimas de sua cadeia alimentar;
O ruminar infinito diante do amor infinito que segue impossível;
A feiura impressionante das mulheres e de seus companheiros abobados;
A beleza das construções mesmo quando simploriamente decoradas;
A cobra d’água na ponte;
A cozinheira triste com a oferta de pratos de seu próprio restaurante;
Chico entrando na cachoeira e os pingos d’água nas costas; a dúvida sobre a felicidade dos cachorros;
A solidão por não fumar;
A desolação de composteiras, de medidores de luz abandonados, de estradas perdidas em que poderiam dormir seres mitológicos ruminando infinitamente sobre aquilo que, para nós, se traduz como o horror.
III
Ricoeur dedica um quinhão importante de La mémoire, l'histoire, l'oubli ao lugar da geografia na memória. Nossa memória é circundada pelo espaço. Espaço que traz o rastro do tempo (tempo que traz rastro do espaço) e das sensações outras já em sublimação simbólica.
O trauma habita.
O amor habita.
Tudo aquilo que é, habita e, na memória, o lugar tem lugar cativo.

Exercício para a tentativa de construção de uma memória marginal: registro que, às 16h09, nesse café de Sapucaí-mirim, uma mulher subiu as escadas em calças de pijama e eu tive a sensação de sentir toda a desolação do universo. Pouco depois, uma criança chamada Aguinaldo desceu as escadas com outras crianças.


