A sorveteria e o cemitério
- João Barros

- 12 de ago.
- 4 min de leitura

Rodoviária de Currais Novos: Wikimedia
A geografia do lugar-nenhum
O sentimento de folha flutuando com o curso do vento, o não-pertencimento como centro fantástico da ideia de minha existência, começa neste não-lugar em que nasci, do qual me despedi no ápice de minha era do espelho e no qual pernoitei, no máximo, duas ou três vezes em trinta e oito anos de vida. Não-lugar posto que desconhecido. Não-pertencimento, pois não se habita o que não se conhece. Ao mistério, às paixões, o delírio.
Mas não chego sequer a apaixonar-me por Currais Novos. Ou penso, em algum momento de minha vida, que não. É como uma camisa, nem feia nem bonita, que não lhe cabe e que pertence a algum parente distante. A memória vaga de um primo de terceiro grau cuja casa exalava um odor de pão amanhecido e, carecendo de ventiladores, um balé de muriçocas pintava delicadamente nossos joelhos de vermelho nas noites de calor.
Lembro de uma visita na infância, naquela idade indefinida entre os três e os sete anos. Tomávamos sorvetes em uma sorveteria no centro da cidade e eu não conseguia lidar com o fato de que o cemitério de Currais Novos circundava a praça, uma de suas avenidas principais e de que seus muros se defrontavam justamente com a vista que tínhamos de lá do pequeno salão da sorveteria. A vista deixava o sorvete com um gosto curioso de culpa, profanação e de catolicismo. Era um sorvete barroco, de calda rococó, complexo demais para uma criança. Talvez por isso tenha sempre temido e adotado tons graves diante do encanto da morte, que é algo que não se escancara. Talvez por isso tenha me tornado uma criança moralista que condenava a própria alma, a de sua mãe e as dos transeuntes em lazer interiorano e que não silenciavam ou baixavam os olhos para o cemitério público Nossa Senhora de Fátima e para o seu sagrado. Mas, como disse, não conhecia e não conheço a cidade em que nasci. É como se, na geografia, eu fosse filho de chocadeira e talvez Currais Novos seja uma cidade gótica cujos moradores conhecem os ritos das danças com os mortos.
Lembro também de meia dúzia de viagens de Pau dos Ferros para Natal em cujos ônibus da Jardinense – ou já seriam as vans que cruzavam como loucas o Rio Grande do Norte doidas para que também nos tornássemos aquelas cruzinhas nas beiras de todas as estradas do mundo? – faziam uma parada de vinte minutos para uma refeição rápida em uma lanchonete de Currais Novos. Havia dois sanduíches, ambos frios, que consistiam em um pão carteira e um pedaço imenso de queijo coalho ou um pão carteira e um pedaço imenso de carne de sol. Eu adorava os dois. Sempre adorei a consistência serena e ao mesmo tempo rude dos pães carteira. Eles, para mim, sempre ofereceram a crocância possível. Pedia sempre os dois com uma vitamina de abacate, pois achava impossível me decidir e, nos tempos do Rio Grande do Norte, era inconcebível existir algo como intolerância à lactose. Às vezes comia um no ônibus-van-assassina no fim da viagem e nesses momentos sentia algo por Currais Novos. Talvez fosse, sim, paixão. Perguntava-me porque não saí andando daquela lanchonete e fui descobrir do que sou feito. Talvez, se tivesse me dado essa aventura, teria visto gemas preciosas e fadas góticas voando e entenderia porque gosto tanto da beleza e porque estou sempre às voltas com as coisas do espírito. Talvez descobrisse que não sou, afinal, de um lugar-nenhum. Mas talvez também o mistério seja mais interessante que a aventura. Talvez o espelho só deva mesmo ser transposto em sonho.
Em uma dessas viagens, já adolescente, uma outra jovem que nunca havia visto na vida, escolheu meus ombros para dormir e deu-me parte do seu cobertor com as pernas encostadas às minhas. Naquela época já eram mesmo as vans assassinas e fazia frio. Quando descemos em Currais Novos, pensei em lhe pedir um beijo. Ao invés disso, lhe pedi um cigarro e fumei com ela, calado, um dos muitos cigarros proibido da minha juventude sutil.
Quando morava na casa de Fátima, minha tia genial, e estudava filosofia na UFRN, lia e relia o livro que ela editou com uma seleção de poetas curraisnovenses. Havia escritores em Currais Novos. Havia poemas belos sobre relógios. Lá, na casa de minha tia genial, tive a ideia de um poema sobre uma aurora ranzinza. Era a imagem que me vinha de minha juventude, mas também dos castelos não explorados dos tantos lugares em que não vivi e em que nasci ao longo de todas as vidas.
Lembro da sorveteria, do gosto de areia e de calor e de pecado e de absolvição e de poesia dos sorvetes de Currais Novos. Lembro que a cidade tem um medalhista olímpico e que é sempre isso que digo a alguém que me pergunta sobre Currais Novos. Lembro dos seus mortos que não conheci e de como as dobras da vida podem nos levar a lugares infinitos.


