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Novas notas musicais para um domingo

  • Foto do escritor: João Barros
    João Barros
  • 2 de nov.
  • 3 min de leitura


john coltrane

John Coltrane. Foto: Francis Wolff


John Coltrane, Lou Reed e os descaminhos de Isaac Brock em pequenas notas dominicais



Por que dizemos adeus o tempo todo?


Everytime we say goodbye. John Coltrane, o brilho que cobre o universo, a força espiritual que tudo sente e tudo transmite, fazendo 5 minutos de 1961 valerem mais a pena do que toda a eternidade. O sax de Mr. Trane vazando e chorando lágrimas de ventura e equilíbrio e sabedoria, lágrimas invisíveis que só Athēná ou John Coltrane poderiam chorar.


Enquanto isso, McCoy Tyner está lá domando – feito o meteorologista de uma chuva de flocos de açúcar – um piano triste e nostálgico, como um copo de café tomado em uma rodoviária de uma cidade desconhecida, como um retrato extremamente encantador do qual não conseguimos desprender o olhar. E esse é o pedaço discreto de My Favorite Things. Sim, esse é o pedaço discreto de My Favorite Things, Deus do Céu! É como se, com Everytime we say goodbye, John Coltrane nos dissesse bem assim: – Olha, eu também consigo pintar uma parede só de azul, e não apenas com todas as cores possíveis e impossíveis. Daí ele nos convida para ver a parede e então percebemos que aquele azul é o azul mais bonito que existe.


É o azul de um ser que conhece e é amado por todos os entes sagrados.


Coney Island babies


Lou Reed balançando com uma guitarra triste, olhos de lince, olhos de fogo, olhos de bêbado, quase chorando, contando-me que queria jogar futebol para agradar o treinador. Motherfucker. Quem nunca quis isso? Até nós, que corremos desengonçados. Derrubando louças na casa dos tios. Deixando os parentes loucos de raiva ao soprar a nata do leite, ao calçar as meias pelo avesso para pegar o ônibus das 18h15 e chegar na universidade a tempo de nos atrasar. Universidade abandonada. Academia é difícil mesmo. Tortos demais, divididos em milhares de pedaços, fugindo do telemarketing, chorando em postos de gasolina, perdendo maços de cigarro, abraçando a eternidade nos olhos do outro. Talvez acabemos a vida fazendo Tai Chi. Talvez a voz de Laurie Anderson ressoe na nossa cabeça como o vento ressoa na mente de Deus. Por hora, buscamos o brilho da colina e tudo aqui também é fantástico a seu modo.


Incessantemente, rumo ao passado


Não há dúvidas de que o Modest Mouse é um parto da música alternativa americana, mas seu diálogo, nos grandes trabalhos da banda, caminha em um escopo que vai além, sumarizando o próprio espírito que atravessa os caminhos da arte dos Estados Unidos. Veja, por exemplo, o diálogo narrativo de Isaac Brock – o pastor de ovelhas Isaac Fucking Brock, o pastor presbiteriano bêbado que rouba e salva almas enquanto fuma Camels com o diabo, o policial corrupto e bom e terrível que se entope de doces açucarados demais, o mensageiro da última palavra que berra por não saber cantar envolto em guitarras metálicas, cruéis e com gosto de carburador de carro antigo e poeira em picolé no deserto – com a tradição literária dos Estados Unidos: da mesma forma que Henry Miller é uma espécie de cruzamento entre o transcendentalismo da Nova Inglaterra com as primeiras voltas de um realismo sem excessos que nasce com Mark Twain, as composições de Brock se partem entre o espírito e a carne. Mesmo em Good News for People Who Love Bad News, início de inflexão para o popular da banda, é possível sentir o vento do espiritualismo de Emerson sem que, no entanto, deixe-se de avistar os cais de porto cheios de aventureiros, prostíbulos, mortos, caçadores de baleias, viajantes perdidos, assassinos, exploradores e explorados que tentam não desperdiçar a própria vida e seu além.


Sim, de alguma forma, o Modest Mouse é uma espécie de reencarnação do espírito desiludido do pós-guerra que assombrou e fez florescer toda grande arte norte-americana do século XX; arte que ainda parecia ansiar por algo metafísico, pelas fundações de uma tradição; um desejo que já nascia desconfiado, como o espírito burguês que sabe que o dinheiro não compra a nobreza nem a história. É num vislumbre desse beco sem saída, desse purgatório do meio do caminho entre o vulgar e o sublime que, em seus melhores momentos, a banda de Washington erigiu odes selvagens e humanas que impeliram toda uma geração rumo ao passado.

 
 

©2023 por Revista Lenta

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