
Agnès Varda, autorretrato, 1962
Divagações sobre Varda, Scorsese e Stallone
Oh, Godard, como você pode ser cruel com Agnès?
Visage, Villages é um filme tão bonitinho. Oh, Varda, e sua habilidade impressionante de construir teias de sentido de tão profundo a partir de um ritmo coloquial que beira a travessura. Meu reino pelo olho e texto de Agnès. Pela sua elegância. Em minhas elucubrações, tenho cá comigo que Wes Anderson bebe dessa fonte em seus roteiros – e muitas de suas tentativas são exitosas, ainda que as últimas tenham descarrilhado para um excesso de formalismo. Mas ninguém faz isso como Varda, que toma um cano de Godard em Visage, Villages e nos deixa com a pergunta: como alguém pode ser filho da puta com Agnès Varda? Como alguém enxerga a luz e não constrói um universo com ela?
Talvez porque Godard, meu diretor favorito, seja um teórico solipsista e os olhos de Varda estejam voltados para o horizonte do mundo. Godard é fabuloso quando está preso em si mesmo. Varda faz sua magia acontecer nas pontes com o outro e não há nada mais acolhedor do que um filme de Varda – mesmo (ou sobretudo) quando o acolhimento é o caminho para o corte, a crítica, o posicionamento, a revolução.
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Well, Godard pode bem ser o guardião da linguagem e do símbolo, mas há certas coisas de que só Varda é capaz. Veja Daguerréotypes, um documentário tão sublime – o melhor documentário do mundo, na verdade, não é? – que você fica até se perguntando se ele existiu, se não estamos cruzando os limites proibidos entre o sonho e a vigília.
É nas pontes que a magia de Agnès acontece, nesse seu cinema de empatia e encanto e amor e desejo, que traz a epifania.
É um cinema absurdo de tão bonito. Vai a merda, Godard.
A poética dos amigos imaginários ou Stallone, meu amor

Quando Stallone recebeu o Globo de Ouro por Creed e agradeceu ao seu imaginário Rocky Balboa, meus olhos marejaram horrores. Primeiro porque amo Stallone, essa montanha de músculos que transborda afeto a cada sopapo. Segundo porque poucos roteiristas são mais subestimados que esse artífice inteligente e sagaz do cinema de ação. Que se dane o fato de que é um compulsivo e lance mais filmes que deveria. Há quem precise do excesso como válvula de sobrevivência criativa. Isso não lhes tira o brilho ou a genialidade quando virtudes irrompem.
Isso posto, se tudo mais que tivesse feito fosse um refugo estético – e não é –, Stallone nos entregou Rocky (1976) e First Blood (1982), duas das maiores realizações cinematográficas de Hollywood.
By the way, se tivéssemos nós superado nosso ciclo cármico, escusado seria dizer que não há termos de comparação entre Rocky e Taxi Driver. O primeiro é a realização plena de um instante de iluminação criativa vindo de alguém que viveu o cerne da realidade fantástica que retrata. O segundo é um rascunho interessante de um estudante da NYU; o esboço das ideias estéticas de um cineasta em formação. Esse ponto me é tão claro que até me seguro, com vias de evitar a pecha de sectário, para não achar o próprio debate sobre esse questão um absurdo, um despropósito, ainda mais quando o dito debate vem carregado de argumentos de um elitismo tribal dos mais cafonas contra esse mágico silvestre e marginal chamado Stallone. Ai, que preguiça.
E First Blood… Bem, First Blood é uma pintura do horror psicológico que nos carrega para dentro da pintura e, no frame final do quadro, nos damos conta de que o balbuciar de Stallone é o choro mais pungente e belo que podemos chorar contra a barbárie.
Scorsese e seu canto para os derrotados

Há alguns dias revi Goodfellas, a exímia e desagradável novela filmada sobre a bandidagem que aspira à glória dos apartamentos oitentistas, sobre o gangsterismo vagabundo de Nova York, cujo filão, de Nova Jersey, foi magistralmente transmitido pelo imaginário simbólico e sofisticado de David Chase.
Fato é que, comparados aos chefões da máfia de Godfather, os bonachões irlandeses do horror de Goodfellas são uns pés-de-chinelo, com pouca moral, pouco profissionalismo ou pouco critério; e, no caso de Tommy DeVito, único italiano do núcleo central do filme e o grande personagem da carreira de Joe Pesci, tudo isso e ainda nenhum equilíbrio emocional. Uma delícia, uma delícia!
O que merece maior destaque na tese do longa-metragem de maravilhosos e eloquentes diálogos presentes no roteiro e com a direção-clásica-drink-de-vermute de Scorsese é justamente o oposto do que se vê na trilogia de Coppola. Não há qualquer senso de honra, respeito ou organização no bando de Goodfellas.
James Conway (Robert De Niro), o mais profissional do trio de personagens principais, peca pelo envolvimento com Henry Hill, provavelmente o maior selfish motherfucker da história do cinema, representado pelo menino bonito Ray Liotta.
Levando em conta que Goodfellas é baseado em fatos reais, Henry Hill é a epítome dos Judas que cospem no prato que comem na santa ceia da máfia, aqueles que, em sua fraqueza, se amparam em falsos escrúpulos.
E Martin Scorsese, bem, Marty é e sempre foi o porta-voz dos traidores, dos alucinados, dos intrometidos, dos perdedores e dos caguetas.
Por isso o amamos e o odiamos em igual medida.