Os viajantes das classes
- João Barros
- há 6 dias
- 13 min de leitura

Acervo pessoal
Um olhar sobre classes, ascensão social e o lugar-não-lugar curioso dos intelectuais não orgânicos a partir de um preâmbulo pessoal e de notas sobre A boba da corte e A amiga genial
Five easy pieces
Não há nada mais confuso do que as relações familiares e, embora isso seja tão óbvio quanto a falsidade do sorriso dos executivos ou dos vendedores de seguros, há uma confusão que, partindo de um seio estrutural outro, acaba, como tudo, por também se imbricar nos íntimos mais íntimos das camadas inconscientes. Confusão que forma fantasmas, sintomas, fantasias que nos deslocam em busca de um lugar, de algo a que nos agarrarmos enquanto indivíduos para que possamos nos adequar socialmente, para que possamos também sorrir, de modo autêntico ou falseado, tendo como referência um ponto de origem, uma pele a ser protegida ou escalpelada, mas que não deixa de ser nossa, o que quer que seja esse invólucro. Essa confusão diz respeito à ideia de classe social a que pertencemos e traz consigo nuances na própria formação de um significante que, de fato, entra em uma dança permanente com o significado de nosso estar no mundo. “Pertencemos a essa classe”, pode afirmar, com orgulho, desprezo, remorso ou fúria alguém com clareza de seus lastros de origem. Lastro econômico, mas também uma redoma simbólica que circunda os limites de nosso universo e que deixa rastros mesmo quando há, por acaso, movimento. Essa equação e suas marcas podem e geralmente se fazem mais complexas em famílias grandes com as de outrora; famílias dispersas, fragmentadas por rompantes de ovelhas negras e de desajustados que rompem o muro da continuidade, da herança não só econômica, mas sobretudo de um éthos existencial. “Que classe? A que classe pertenço?” O porto seguro ou terrível da afirmação de pertencimento, acrescido de um “que”, é também o sinônimo do desnorteamento.
Vindo do Rio Grande do Norte nos anos da primeira infância, cresci em bairros suburbanos da Zona Sul de São Paulo. Éramos todos filhos de metalúrgicos, marceneiros, serralheiros, mecânicos, de donos de mercearias e botecos onde nossos pais enchiam a cara e nos compravam doces que, por sua vez, enchiam nossos dentes de cáries e nossas mães, quase todas donas de casa, de remorso. Enquanto lugar de reconhecimento social, definíamos-nos, ora simplesmente como pobres e em horas de maior autoestima – para nos diferenciar dos miseráveis que não podiam sequer frequentar a Casa do Pão de Queijo ou o McDonald's uma vez por mês, geralmente nos fins de semana em que também se faziam as compras mensais no Carrefour da Imigrantes – como os membros de uma classe média baixa cujas linhas nunca eram muito claras.
Sei que observando meus vizinhos que estudavam no Colégio Renovação, dirigiam Corsas Wind azuis metálicos e usavam moletons da Fila, eu sentia que éramos apenas pobres e um tanto mais pobres do que todos os que nos circundavam. Essa sensação era acentuada pelo fato de que vivíamos sempre na pindaíba, com cobradores batendo a porta e, já naquele lugar temporal, parecia-me insuficiente o fato de “não faltar comida em casa”. Parecia-me pouco. Parecia-me pobre. Éramos sufocados pelo fio de uma navalha estrutural.
Com o tempo, descobri que estávamos todos nós, os habitantes das redondezas da Cursino que àquela época pareciam infinitas, mais ou menos no mesmo lugar. A diferença é que meu pai, que já chegou a ter sua própria marcenaria e bons contratos com escritórios de arquitetura, nunca soube lidar bem com dinheiro. Minha mãe, embora, como eu, sentisse mais angústia com o estado das coisas, muito menos. De modo que, embora não faltassem biscoitos da Bauducco, potes de requeijão, pizzas ou esfihas às sextas-feiras, festas de aniversário com bolos floresta negra que nos deixavam mais endividados, dinheiro para os geladinhos e algum trocado para a cantina, em São Paulo, nunca estudei em colégios privados, nunca tive meu próprio quarto – até os quinze anos, dividi a falta de privacidade com meu irmão –, e, nossos carros, quando haviam, eram sempre Fuscas ou Brasílias ou Corcéis caindo aos pedaços. Tão pouco tivemos propriedade alguma antes do divórcio de meus pais e, de três em três anos, mudávamos para algum sobrado ou casa de fundos ali mesmo, na Água Funda, na Vila Santo Estéfano ou na Vila Brasilina, dividindo quintal com algum vizinho que já tinha seu próprio computador ou seu próprio Fiat Uno e andava com o queixo seguro que, então, eu associava a riqueza, mas eram apenas os queixos seguros de auxiliares administrativos com as contas pagas que possivelmente ganhavam menos que meu pai, mas que sempre nos olhavam de cima, como membros de uma classe ciosa de suas finanças. Os autênticos pagadores honestos de boletos e dos financiamentos infinitos de seus carros usados. Eram os queixos dos financiadores da classe média baixa que, à época, tinham orgulho de votar no PSDB.
O que mais incomodava naqueles anos e que ainda não sabia nomear era uma espécie de vazio estético-cultural. Nossas casas eram feias e sem qualquer senso de harmonia. Comecei a me dar conta disso nas visitas ao apartamento de tia Lélia, irmã de meu pai, em cujos móveis eram sempre novos, macios, ordenados segundo uma lógica que almejava alcançar a beleza. Ainda que hoje, muito possivelmente, eu fosse achar as escolhas de minha tia que exalava o cheiro dos perfumes do Boticário questionáveis, eram escolhas, ela fazia escolhas e eu admirava profundamente por isso. A admirava por se contrapor, com sua independência, a desordem sufocante, a resignação de meus pais ante ao bruto, a feiura ordinária – eles que, ainda tão jovens, tinham traços belos – como se, por sermos pobres, não pudéssemos cultivar o gosto. Era como se não bastasse a pobreza, ela tinha de ver acompanhada da desestrutura estética, de modo que, logo cedo aprendi que sem ordem, de fato, não há possibilidade de beleza e, no apartamento de minha tia eu me sentia não só bem, mas em um sonho. Fazia parte de algo que eu queria fazer parte. Sua tia pensa que é rica. Essa é a memória que tenho das conversas de meus pais sobre a irmã de meu pai. Talvez seja imprecisa. Mas a sensação é correta: pensávamos que minha tia pensava que era rica. Meus pais o faziam com despeito. Eu, com profundo fascínio, passei a associar riqueza e beleza como pontos de uma mesma linha que eu também queria, desesperadamente, percorrer.
O vazio estético-cultural, o não-cultivo da beleza, a impossibilidade do gosto, da escolha, como se tivéssemos que nos limitar a agradecer por não passarmos frio e comermos mistos quentes com Coca-Cola nos lanches da tarde, se estendia às limitações intelectuais. Nas nossas casas, na maior parte do tempo, não houve livros que não os escolares e as enciclopédias baratas vendidas na porta da escola. Fui ao cinema pela primeira vez já próximo dos 11 anos, com meu tio Marcos, também irmão de meu pai e que, então, era minha referência de homem inteligente com seus discos do The Smiths, Smashing Pumpkins, meia dúzia de livros em uma prateleira na quitinete em que vivia e até com sua introversão e seus óculos vermelhos de aro grosso que o deixavam com um rosto, ao mesmo tempo, inseguro e arrogante, como um personagem de alguma canção do Belle & Sebastian e como todas as caricaturas de indivíduos letrados da alta e da baixa literatura que eu começava a ler. O mais próximo de experiência cultural fora dos muros de minha casa que tive naqueles dias – dias que, lembro-me, eram espessos como a neblina das caminhadas para o colégio público da Francisco Hurtado em que estudei durante todo o primário – foi essa ida ao cinema para ver um filme de Jean Claude Van-Damme e os passeios escolares para o Parque da Mônica. Já dentro de casa, a TV Cultura e os pequenos documentários da TV Escola sobre artistas, cientistas e intelectuais – me nutriam de outro desejo: ser mais inteligente que os meus pais e que todos os brutamontes do mundo que de mim escarneciam em meu eterno movimento pendular de sociabilidade e introversão e que se distribuíam aos montes nos bairros pobres de minha doce-amarga Zona Sul periférica.
Há incompletude nas memórias das experiências culturais fora de casa. De cedo, a observação do fuzuê e do burburinho das ruas transformou-se numa espécie de meditação contemplativa e ia compondo diálogos, quadros, possibilidades criativas que, de algum modo e em algum momento entre os 8 e os 9 anos, começaram a irromper sob a forma de poesias cuja métrica se baseava, essencialmente, no uso de rimas forçadas mas que deviam ser cativantes para o olhar dos adultos; e em redações escolares. Era o tempo das idas ao centro com minha mãe, em longos passeios de ônibus em que eu colava o rosto no vidro dos coletivos para sentir o cheiro da São Paulo, de seus prédios e de sua gente migrante, imigrante, que eu tanto, de longe, amava.
Passei, naquela época, a também frequentar a biblioteca da escola. Gostava da Série Vaga-Lume e ia escrevendo poemas e redações que eram elogiados pelas professoras, pelos pais de meus colegas, vizinhos e por minha mãe que, estimulando a inclinação que viu em mim para o texto, comprou-me uma máquina de escrever e vivia dizendo que eu seria escritor ou jornalista. Isso me despertou uma divisão fundante: queria sua aprovação e queria navegar pelas letras que, logo cedo, descobri que seriam mesmo minha única bóia de salvação no mundo. Mas sentia revolta pela falta de estímulos para além da televisão, para além do cotidiano que se impunha e pela própria resignação de minha mãe, uma mulher inteligente, que escrevia belas cartas na adolescência e que teve, em algum momento, gosto próprio – teve também seus discos, sua coleção de moedas e tenho memórias vagas dela lendo romances que foram indo embora na medida em que eu mais delas e deles precisava.
Somos duros com as mães e eu fui duro com a minha. Queria que nos salvássemos juntos e, quando percebi a necessidade de caminhar sozinho, por vezes, mandava a merda à escola, tirava notas deploráveis por cansaço, andava com meninos burros e violentos e, mais tarde, passei a me entupir de drogas, a agarrar todo e qualquer vício repetindo o círculo preguiçoso da confusão entre criação intelectual e personalidade rebelde e postiça.
Nesse meio tempo, larguei duas graduações, uma delas na UFRN, nos tempos em que descobri que meus pais vinham, afinal, de grandes famílias abastadas do Rio Grande do Norte e que a maioria de meus primos, tios e tias – sobretudo parentes de minha mãe e que não foram arrasados pelo destrambelho de parte de seus filhos, como o foram meus avós paternos – viviam entre o conforto médio ou alto do funcionalismo público, entre a riqueza kitsch da burguesia bancária ou do acúmulo de propriedades dos empreendedores bem-sucedidos. Tudo isso aprofundou minha desorientação de pertencimento e durou mais de duas décadas. Décadas em que me balançava entre a admiração, o desprezo e principalmente o despeito pela riqueza; pelo intelecto que parecia ser acessível só a quem possuía bases estabelecidas de nascença; mas que também se estendiam, com igual violência, contra a pobreza rude e a ignorância.
Por diferentes razões, assentei-me bem no lugar do observador que tanto me agrada e que descobri na infância. Com a graça dos santos, já não há rancor. Em paralelo, a ideia do intelectual orgânico na acepção gramsciana, penso, um tanto me cabe e veste a todos nós, os filhos da não-estrutura.
Também por diferentes razões e alguma brecha, houve ascensão. Claro que sempre frágil, pois aquilo que não se herda, faz-se na vida presente e há sempre o receio do desamparo. Mas, quando se vive e sobrevive ao desamparo, às vezes percebe-se que é possível viver e sobreviver. Ao mesmo tempo, nos tornamos, via de regra, mais resilientes do que aqueles que herdam tudo anterior e posterior às suas existências e que, por isso, correm outro risco: o de ficarem amolecidos, fragilizados e ineptos diante do infinito que lhes é oferecido. Talvez porque tenhamos aprendido a valorizar a possibilidade da escolha – sabemos, afinal, o quão rara ela é nos subúrbios do mundo.
A boba da corte
“Senti uma dor e um horror tão grande da minha amiga com medo da minha infância que comecei a passar mal.”
Em uma leitura desatenta ou, mais precisamente, em uma leitura sem o lugar de fala do não lugar, A boba da corte, último lançamento de Tati Bernardi, essa artífice admirável da autoficção sardônica, pode parecer simplesmente um pequeno manuscrito da revolta. E é evidente que ela está lá, a revolta, mas o que circunda o livro é uma reflexão muito mais rica e, sobretudo, profundamente honesta, que transcende o rancor ao tentar mapear o éthos, as formas simbólicas que perpassam aqueles que, por alguma razão, ascenderam intelectual e socialmente vindos da não-estrutura, do não-organicismo das elites intelectuais e/ou economicamente abastadas.

O livro tateia essas fronteiras e formas de um éthos frágil – posto que a segurança é própria daquilo que se herda e portando não existe – que permeiam e que se abrem aos viajantes das classes ao descrever, com precisão assustadora, o desejo do movimento para além dos limites do periférico e a percepção de que, ao se chegar no paraíso das elites nos defrontamos com o sentimento estrangeiro, com uma vasta maioria de pessoas não tão interessantes assim, mas que carregam, diferente dela e dos outros viajantes, justamente a solidez da redoma da tradição, da história, do capital hereditário; o suprarreferido abestalhamento dos herdeiros diante das alternativas infinitas que pode os fazer incapazes de escolher, de produzir, de amar, de firmar laços, de se comprometer, de serem autênticos e de construírem histórias se não dentro de suas próprias redomas; a identificação e a busca por referências que sirvam como bússolas em meio à desorientação de uma transmutação sócio-existencial e que, bem por isso, facilita a compreensão da autora, por exemplo, diante de homens estúpidos self made que também já foram pobres e que solapam o passado com o esbanjar pequeno burguês; a impossibilidade do retorno; a inadequação que, por fim, se transforma em impulso criativo e sátiro que faz de Bernardi a grande escritora e a grande voz que de fato é.
“[...] tenho certeza de que estou me tornando uma daquelas pessoas ridículas e odiosas. O tipo de gente que, por alguma razão, eu sempre quis ser e, ao mesmo tempo, sempre quis destruir.”
No que carrega de reflexão sociológica e filosófica, o livro é dicotômico como quase tudo que me interessa, pois, no processo analítico, não só toda certeza fácil é vulgar, como soterra a complexidade dos seres e das coisas todas. Há, nesse sentido, o mistério, o por alguma razão que está por trás da ascensão sem estímulos evidentes; o mistério do sentimento estrangeiro e do grande outro da riqueza e da pobreza; das agruras que perpassam o caminho da ambição em prosperar, em elevar-se, em um país tão economicamente desigual e socialmente nefasto como o Brasil e o que fazer depois que chegamos, afinal, em algum lugar em que nos sentimos, igualmente confortáveis, merecedores de nossos pequenos luxos e ridículos… Não há uma resposta objetiva; o que há é um eterno retorno de sensações que se firmam, que tornam o livro não só palpável, mas harmônico em seu tear. Nesse tear, Bernardi ata e desata nós que talvez sejam, eles mesmos – os nós –, o estado permanente possível de tudo aquilo que não é herdado.
“E eu jamais poderia retornar para o lugar de onde vim, tampouco podia me sentir bem de verdade no lugar aonde cheguei.”
Talvez seja esse o grande trunfo dos viajantes das classes. Ou não é, afinal, o eterno, por vezes sutil e tantas vezes avassalador, desconforto de quem pode perder tudo o tempo todo que faz de alguém no mínimo mais pronto para fazer escolhas, a produzir, amar, firmar laços, se comprometer, ser autêntico e construir histórias posto que, o movimento, para além de qualquer redoma, se lhe for permitido nascer, nasce quando nos damos conta de que, na vida, tudo é finito? Diferentes dos filhos eternos das elites que ostentam em seus andares a calma de quem sempre terá onde se recostar e, não raro, se paralisam por jamais terem suportado a dor do não lugar, por nunca terem sido largados ou enlouquecidos ou implorado por amor, os viajantes têm, via de regra, de escolher.
Não se trata, no entanto, de um silogismo ou de uma equação e Bernardi, me parece, não se propõe a desenhar silogismos ou equações. Da mesma forma que nas elites há, afinal, a possibilidade da autenticidade e, de resto, não só é possível como é esperado e planejado que o periférico se mantenha periférico enquanto pobres são moídos ante a desigualdade das condições de partida em um país estruturalmente fraturado; o que autora faz, no fim, é mapear seu próprio éthos sem a pretensão de estabelecer paradigmas fundamentais.
E que éthos é esse? Que éthos é esse de alguém que já foi pobre o suficiente para acreditar em Deus e que foi proibida de “andar com as pessoas da rua” na infância e que se sentia estranha por morar em um lugar e ser criada para acreditar que aquele não era seu lugar e a quem não foram dadas tantas chances de falhar. Qual, enfim, é o éthos de quem, hoje, possui um trem, mas são os outros que possuem a passagem? Nesse atar e desatar de nós sociológicos, psicanalíticos, autoficcionais, penso que o mapear de Tati Bernardi alcança algo do mistério. O mistério do éthos e de seus nós.
A amiga genial
“Naquele último ano do ensino fundamental, a riqueza se tornou nossa ideia fixa. Falávamos dela como nos romances se fala de uma caça ao tesouro. Dizíamos: quando ficarmos ricas, faremos isso e aquilo. Quem nos ouvia achava que a riqueza estivesse escondida em algum canto do bairro, dentro das arcas que, ao serem abertas, chegavam a reluzir, só à espera de que as descobríssemos. Depois, não sei por que, as coisas mudaram e começamos a associar o estudo ao dinheiro. Pensávamos que estudar muito nos levaria a escrever livros, e que os livros nos tornariam ricas. A riqueza era sempre um brilho de ouro trancadas em cofres inumeráveis, mas para alcançá-las bastava estudar e escrever um livro.”
No romance do século escrito por Elena Ferrante, damos-nos conta de que não só é possível sucumbir na viagem rumo a ascensão intelectual e econômica; a viagem daqueles que não carregam as raízes orgânicas das elites, como isso pode ocorrer com nossos amigos geniais, com mentes talhadas como que por Deus para o brilho mais original e de quem somos separados nos vagões desse trem incongruente, injusto e perverso. Muito mais do que o raciocínio bestial meritocrático, é um qualquer porquê impossibilitante ou excruciante demais para ser rompido que, por vezes, expulsa os viajantes de modo que, enquanto alguns têm a sorte de encontrar uma brecha em meio a outros tantos porquês suplementares, a outros, essa brecha fundamental é vedada pela cera de velas maciças demais até para os mais brilhantes e astutos que cruzam nossos caminhos com seus olhos que parecem capazes de perscrutar todos os mistérios do universo.

Como no livro de Bernardi, há, em A amiga genial, os nós que perpassam o éthos dos intelectuais não orgânicos e daqueles que furam as redomas de suas classes sociais. Mas, enquanto Lenu encontra a brecha fundamental, Lina é engolida pela prosperidade possível das margens, ela, que tudo vê – inclusive o desmembramento do outro – mas para quem foi vedada a brecha, o ponto de fuga. Não será por isso que o livro se inicia com ela se recortando de sua própria história, apagando vestígios e sumindo daquilo que lhe foi imposto, numa fuga que lhe era, desde o início, seu direito?
Não sei. Ainda não li o restante da quadrilogia dos romances napolitanos. O que sei é que foi um acaso fortuito ler Ferrante e Bernardi em tempos semelhantes. Há não só um diálogo entre os livros. Lidos em conjunto, o mapa dos viajantes das classes amplia seus contornos e, nesse sentido, enquanto vemos em Lenu, movimentos semelhantes ao da Bernardi de A boba da corte (de identificação, de desnorteamento, de amores difíceis por aqueles que tem onde recostar as cabeças), em Lina, vemos a dor dos nossos amigos geniais expulsos do trem – “Não quero ler mais nada do que você escreve. Por quê? Por que me faz mal” – dos eternamente reconhecidos como plebe – A plebe é uma coisa muito feia. E se alguém quer continuar sendo plebe, ele, seus filhos e os filhos de seus filhos não serão dignos de nada – e dos que desejam, desesperadamente e talvez por tudo isso, que nos tornemos o, a melhor de todos.
Que nos tornemos, afinal, os amigos geniais que eles são, não são e poderiam ter sido.