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Acredito em promessas. Gosto de acreditar. Entendo que são complexas, por vezes absurdas e que partem de um princípio de permanência filosófico demais, essencial demais, para a pressa com que costumam ser firmadas. Mas acredito em promessas porque acredito em compromissos enquanto simbologia, enquanto mote para uma espécie de levante que se opõe ao desmembramento contemporâneo – das relações, do interesse, do trabalho e do valor do trabalho, da atenção, do tempo, do humano.
O banquete e as almas impróprias
Penso sobre isso a partir de pedaços de ideias que foram me surgindo quando li sobre a venda da Oi, que se concluiu no início de 2022 mediante a aprovação do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) de uma operação megalomaníaca que repercutiu nas filas de catracas automatizadas de prédios corporativos, nos cadernos de economia e entre a meia dúzia restante de usuários da antiga Telemar, empresa de telefonia fundada no fim dos anos 90 em meio ao processo de privatização do Sistema Telebrás.
Agora, os ativos da Oi passam a ser de posse de um consórcio que une, basicamente, as outras três grandes redes operadoras de telefonia do país. Como em um acordo neoliberal de cooperação bélica ou em um banquete pantagruélico do financismo onde o corpo morto da Oi é desmembrado, Tim, Claro e Vivo viram irmãs em um festim antropofágico.
No ritual típico de canibalismo e autocanibalismo que move o universo das fusões e aquisições, gigantes transnacionais partilham clientes, tecnologia, poder, e apagam símbolos do capital de outrora. Muito em breve, a Oi será lembrada apenas uma lembrança vaga de almas acanhadas – para usar uma expressão de John B. Thompson – que se aferram ao passado e guardam retratos do tempo na memória, como católicos que se aferram a imagens de santos, partilhando em comum o desejo pelo contínuo, pelo eterno.
Talvez, para essas almas acanhadas, carregar os símbolos do tempo – que, afinal, também reúnem fragmentos de rótulos, embalagens, slogans e todo um cemitério de lembranças propagandísticas das relações de mercado –, seja a espiritualidade possível dos tempos sem raízes. A espiritualidade material de quem assistiu sorteios da Kolynos em programas dominicais. Uma espiritualidade imprópria.
Vida e morte da Oi
A Oi era, muito possivelmente, a principal referência simbólica do mercado para um adolescente crescido no Nordeste em uma era pré ou muito rudimentar da informatização em massa no país.
Para mim, ao menos, foi. Meu primeiro celular, um Nokia 1100 – cujo principal diferencial era ter uma lanterna e que ganhei aos 17 anos, quando me mudei para Natal para estudar filosofia – tinha a Oi como operadora. À época, invejei o Oi MTV, aparelho mais moderno e com toques polifônicos que alguns de meus primos carregavam orgulhosos em suas cinturas. No dia em que comecei a escrever este artigo, é verdade que o Oi MTV me pareceu colorido demais. Mas éramos jovens, começávamos a beber, a fumar, a ouvir um espectro mais amplo de bandas alternativas, a zombar de Malhação – embora ainda assistíssemos – e o Nokia 1100 era sóbrio demais para todas aquelas emoções fervilhantes.
Impermanência
Escrever sobre a morte sacramentada da Oi é também escrever sobre a impermanência.
Marketing: a essência do simulacro, o motor da sociedade do consumo no qual não necessariamente acreditamos, mas estamos cansados demais, como alguém que desiste de buscar uma Coca-Cola na geladeira. E não acreditar, afinal, não significa não submergir: na pronta violação de qualquer promessa, no irreal por natureza, na verossimilhança alienante.
O próprio contratualismo burguês é profanado pelo tempo e pelo marketing e a Oi é um exemplo muito evidente desse jogo vão de palavras e termos escritos em letra miúda. De que vale, afinal, um contrato quando a tendência é a ruína? De que vale o marketing para os órfãos do Chip Oi 31 anos que talvez observem, desatentos, uma promessa perdida se desvanecendo na nebulosa dança de grandes corporações que partilham uma carcaça?
O espanto seccionado
O arranjo e a tentativa de sobrevivência do mercado – crise após crise – no pós-capitalismo é, por essência, um movimento de desgaste, de perda. Um movimento guiado por uma abstração, por um virtualismo sem correspondente na realidade. Por promessas desleais que ampliam o caos psíquico.
É de se esperar que tudo se desmanche diante de tal vácuo. É de se esperar que as memórias desse ciclo econômico afetem nossa própria percepção de memória e de tempo.
E, enquanto lembramos vagamente de propagandas de operadoras que anunciavam o futuro da hiperconexão com crianças vestidas de super-heróis que pareciam animadas demais ou que nos saudavam com espanto, uma estrutura nos desmembra e se desmembra.