Uma carta de amor para Diane Keaton
- João Barros

- 12 de out.
- 4 min de leitura
Atualizado: 12 de out.

Diane Keaton, Yahoo
Para o brilho maior do meu mundo fílmico
No domingo, usualmente, escrevo. Compro a edição impressa da Folha de S. Paulo, a feira da semana, tomo café na padaria ao lado de casa ou no café francês da Corifeu de cadeiras horríveis, mas confeitaria incrível e que me sacia com o sagrado confeito semanal; organizo minimamente as coisas de casa, e escrevo. Durante a semana, combinei comigo de usar o domingo e sua aura simultaneamente apolínea e dionisíaca feito Deus para terminar o livro de pequenos ensaios memoriais sobre o Cambuci e outras digressões geográficas, com a caça dos rastros de minha viagem ao Chile nos idos de um tempo que já não é o meu, mas Diane Keaton está morta e, por Keaton, sou capaz de adiar projetos, de sabotar novidades em prol da revisitação de algum de seus filmes que ajudam a compor essa ideia fugidia e presente (como não) que tenho de mim mesmo e de meu mundo, de tecer preces que chegarão aos céus como murmúrios íntimos. Pois Diane Keaton é o brilho primeiro e maior da estação fílmica deste meu mundo, o eterno retorno que perpassa uma história pessoal, a minha, a metade que compõe o equilíbrio daquilo que acredito como relevante no cinema.
Meu primeiro filme favorito e que segue na lista das obras que mais venero – sim, o termo preciso aqui é veneração – foi Father of the bride, o original, de 1991, e que entra ano, sai ano, revejo, assim como faço com Notting Hill, meu quinhão britânico adorado de um gênero que me formou esteticamente.
As comédias românticas, como outros subgêneros fechados do cinema, caminham no gelo fino das imposições estruturais que parecem destiná-las ao fracasso e ao datado, talvez porque todo idealismo estético tenha algo de pueril – ou o Dogma 95 não é, também, uma brincadeira pedante de jovens dinamarqueses pretensiosos? Mas é daí também que surge o charme da estrutura e de seus limites, auto-impostos (e livremente por nós aceitos), em virtude do apreço compartilhado por uma ideia.
Assim como no terror, que quando acerta, toca o divino na arte, mas cujo acerto é raro, as comédias românticas sublimes também são raras e tão por isso seu fulgor, quando achado, é de uma sedução irresistível. Mas, se no terror maior, temos a virtuose das imaginações fantásticas – fantasia que talvez seja a ficção por excelência enquanto forma –, na comédia romântica sublime, temos diante de nós pequenos diários filosóficos, excertos morais que teimam em propor seus círculos para o cotidiano de nossas almas solitárias, ensaios de observação sobre as bases que fundamentam as relações humanas – o amor, o ódio, o desprezo, o desejo, o sexo, a comunicação e sua impossibilidade.
Esse foi o grande ponto de inflexão, o movimento genial que Woody Allen trouxe de contribuição para o cinema: romper o véu que separa a comédia romântica daquilo que ela tem de essencial, que é justamente esse olhar reflexivo para a nossa dança dos cisnes em torno de nós mesmos e do Outro. A proximidade que Allen tanto buscou com o cinema de Bergman não é, nesse sentido, um mero retrato de admiração, mas um encontro muito mais relevante no conteúdo que na forma – há entre a grande comédia romântica e o trabalho de diletantes humanistas e corruptos da teoria como Bergman ou Godard não só uma proximidade, mas um diálogo umbilical.
E se Woody Allen foi aquele que desnudou e expôs as entranhas da comédia romântica para os vivos, Father of the bride é o Dogville dessa poética peculiar, refletindo uma estrutura com primor e dosando, com controle absoluto, cada tempo do que se espera em um filme do gênero – não se trata de previsibilidade, mas de maestria.
E, em alguns dos principais filmes de Allen e em Father of the bride – que, de resto, tem um roteiro feliz em conjurar a abertura progressista dos anos 90 com o desejo idealista pelo impossível assinado por Nancy Meyers – o brilho de Diane Keaton, sua versatilidade sutil, sua elegância cênica, sua leveza que é também sinônimo do mais absoluto controle sobre uma arte, não só estavam lá, como eram essenciais. Como imaginar Annie Hall ou Renata de Interiors ou a cínica Mary Wilkie de Manhattan por outro ser que não Keaton? E quem faria um diálogo mais convincente com um Steve Martin preso por roubar pães na sua tour de force edipiana, fazendo-o repetir uma ladainha para acalmar-se como a amante-madonna de um homem bom e tolo?
A soberba série Young Pope, de Sorrentino, foi o último trabalho recente que vi com Keaton. Seguia brilhante, como óbvio, e Sorrentino é mais um que prova o diálogo óbvio entre o drama, digamos, reflexivo, e a comédia romântica. Sorrentino sabe o valor do riso. Godard e Nichols também sabiam. Tenho minhas dúvidas sobre Bergman que, no meu Olimpo, senta em uma cadeira muito mais discreta.

Cena de Young Pope, Flickr
O obituário da Folha se refere a Keaton como "musa" de Woody Allen. É de uma imprecisão que só jornalistas são capazes. Keaton e Allen eram iguais em diálogo.

Allen e Keaton, People Magazine
Entra ano, sai ano, lembro-me da última cena de Annie Hall. Há algo que resuma mais os amores partidos, a essência das comédias românticas e o adeus?
La-di-da, la-di-da, la la.


