Isabelle Huppert: Peter Lindbergh
Em "Uma vida sem ele", a célebre e incansável atriz francesa constrói labirintos de fuga e de reconquista
Caía uma chuva tímida no Rio de Janeiro em 20 de junho quando fomos para um cinema de Botafogo em um dos charmosos táxis amarelos cariocas que me fazem pensar em um passado que não vivi.
Calhou do filme escolhido ser Uma vida sem ele, estrelado por Isabelle Huppert. Não se sabia muito sobre o filme além da curta sinopse da bilheteria. Mas Huppert sempre foi uma razão justa para se encarar duas horas de cinema.
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Em A professora de piano, primeiro filme que vi de Huppert, há um magnetismo na ausência da atriz que, mais do que o próprio filme de Haneke, fez-me acompanhar sua carreira desde então. Essa ausência sublimemente transposta às telas, esse quase desinteresse e crueldade que até lembram a definição de amor lacaniana de "dar aquilo que não se tem para alguém que não o quer" também aparecem, de tempos em tempos, em Uma vida sem ele – um filme que, se não é brilhante, entrega momentos de encanto, sutileza e até de humor ao descrever, sem maiores sentimentalismos e com habilidade, a história de uma mãe marcada por perdas e deserções; e de sua busca pelo domínio do passado, esse animal grotesco.
Mas Uma vida sem ele não segue a trilha mais visceral de A professora de piano ou de Ela (talvez seu trabalho mais conhecido pelo grande público); o filme tem uma catarse delicada, como que numa jornada da heroína em torno da lenta e contínua redescoberta daquilo que somos; um processo analítico de expiação da dor, da culpa.
O evidente charme da destreza
Charme é um termo usado de modo comumente na grande mídia para descrever o cinema, o estilo de atuação e a própria Huppert.
O termo poderia ser preciso – se lido, por exemplo, dentro da perspectiva também lacaniana de ausência; de "objeto perdido do desejo"*; e que foi, de fato, explorada por Huppert em diferentes filmes – mas é insuficiente quando situado fora de um contexto que faça jus à complexidade do profícuo e incessante trabalho da atriz parisiense que, ao longo de 52 anos de carreira, participou de mais de 150 obras, acumula 118 premiações e é vastamente reconhecida pela crítica especializada.
Dos anos em que se notabilizou pelas parcerias com Claude Chabrol em trabalhos como Assunto de Mulheres e Mulheres Diabólicas, passando pelo ciclo de filmes dos anos 2000 que elevaram sua popularidade, e mesmo em um obra de menores pretensões como Uma vida sem ele; o fio condutor do trabalho da atriz – muito mais do que uma noção vazia de charme – é a dicotomia e o mistério; que dialogam com o charme, mas a ele não se reduzem.
Isabelle Huppert e Claude Chabrol: Richard Ballarian
A dicotomia e o mistério são transmitidos tanto na atuação sempre segura, até onde a vista alcança, de Huppert; quanto nas escolhas de personagens feitas pela atriz em sua carreira.
Sobre a atuação, Huppert parece trafegar em um balanço curioso e original entre o laconismo, a contenção e o distanciamento de quem expressa emoções pungentes com um arquear de sobrancelhas; e o êxtase das emoções instintivas da quase loucura, do torpor da violência, do pavor e do sonho infantil.
E quanto a seus personagens, via de regra são dúbios, cheios de dimensões e pathos inacessíveis.
Em entrevista recente para a Revista Veja, aliás, Huppert diz que "o cinema permite mostrar as nuances da vida humana" e que ela se interessa, justamente, por "pessoas complexas, intensas, que nos deixam em dúvida sobre seus atos". Uma vida sem ele é um novo e pequeno monumento a essa complexidade.
E Huppert faz isso como algo corriqueiro e simples; como se trocasse lâmpadas ou tomasse um café em alguma esquina de Paris. É nesse plano, talvez, que resida seu charme ao mesmo tempo mais absoluto e mais acessível: pois Huppert é mestra de seu domínio e de seus labirintos. E é sempre belo ver alguém construir algo com destreza.
*Expressão utilizada pelo Doutor em filosofia e psicanalista Antonio Quinet na obra "Os outros em Lacan
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