Diálogos do Cambuci
- João Barros
- 21 de abr.
- 4 min de leitura

Vittorio Gassman em performance de Édipo Rei, 1955, Wikimedia
Dois diálogos no Cambuci – e o diálogo difícil
Diálogos do Cambuci
Édipo no supermercado
Uma mãe acompanhada de seu filho me pede um cigarro e, enquanto isso, a criança com seus quatro, cinco ou seis anos lhe pede incessantemente Tic Tacs que estavam em uma sacola de supermercado, ao que a mulher, com seus olhos cansados e distantes como o de tantas mães solitárias no dasein parental, responde:
“Calma. Estou acendendo o cigarro. Fique longe. Fumaça faz mal”, assim mesmo, em pausas, como em um poema concreto que busca alívio diante de um movimento incessante.
“Então me dê o celular”, diz a imperativa criança.
“Calma. Um minuto… Deus, você quer a minha alma também?”, interpela a mãe que, enfim, consegue acender o cigarro com meu cigarro e conectar algumas frases com mais fluência, com o resto de energia que ela parece absorver de um âmago profundo e obscuro.
“Eu quero. Eu quero a sua alma também”, eis a fala do desejo radical de um infante que rompe com os limites da enunciação lacaniana. Eles esperavam um Uber e agora cá me pergunto se estaria o motorista pronto para se defrontar, assim tão de perto, com o mito de Édipo encarnado e seus Tic Tacs de laranja.
Santa Isabel despida pelos seus celibatários, mesmo
A mulher chega na Santa Isabel com seus olhos arregalados e rosto de fascínio e desespero e ingenuidade e resiliência típicos daqueles que, como eu, vieram de algum rincão distante e infinito do Brasil.
- Esse croissant é de que?
- De queijo prato.
- Mas é presunto e queijo?
- Não, queijo prato.
- E de que sabor é?
- Queijo prato - diz o mais resignado dos chapeiros para a mulher que segue com olhos confusos e você de repente se pergunta se tudo aquilo é mesmo real.
O diálogo difícil
Moro no Cambuci há 8 anos. Nesta casa, da Avenida Lacerda Franco, há pouco menos de 4 anos. Só descobri o nome de meu vizinho no ano passado e por vezes, agora mesmo, me esqueço.
Fato é que tenho uma dificuldade terrível para construir vínculos baseados na conveniência/proximidade territorial/nas conversas de elevador e exaspera-me a intimidade gratuita. Não é que eu seja propriamente introvertido: converso por horas e com desenvoltura dignas de uma alma solar com alguém que me interessa. E de onde nasce o interesse? Ora, para além do óbvio de que é muito mais fácil se afeiçoar há algo que nos é semelhante – preso que estamos em nossa dança narcísica –, há um movimento mais intrigante pelo seu mistério, que é a afeição que se intui, no sentido bergsoniano, como se soubéssemos/sentíssemos a essência do outro e essa essência a nossa se liga. Ou, como diz o senso comum de modo possivelmente mais sagaz: bate-se o santo.
É raro que isso me ocorra pelo simples fato de ser vizinho de alguém. Mas há exceções, claro – gostava muito do Rogério, o copeiro da Santa Isabel que morreu de Covid, apesar de termos trocado tão poucas palavras, como gosto muito de Tião, o chapeiro emburrado da Famalicense. Simpatizo bem com o dono do Gringo – o boxer mais belo do Cambuci e tão doce que deveria se chamar Rocky Balboa – um senhor na casa de seus setenta anos com o espírito amável dos cariocas quando amáveis (há poucas coisas mais amáveis que o carioca amável, esse ser de paixões tão explícitas), como simpatizo bem com a dona de Bóris – o cão mais belo do Cambuci, depois de Chico, meu cachorro, que um dia foi chamado de "o vira-lata perfeito, pois ele parece a junção de todos os vira-latas do mundo" por uma vizinha –, uma senhora elegante que nas últimas semanas parece ter envelhecido muitos anos, feito o próprio Bóris, que tem a idade de Chico mas já anda assim, devagarinho, daquele jeito que me dá vontade de chorar nos dias de frio. Gosto de todos os garçons da Juriti e de um senhor de bigodes bonito com quem comprei muitos Camels no Giba’s, pois na Juriti, cigarros não há.

E é claro que perco coisas com essa distância, sempre à espera do encontro intuitivo ou baseado na partilha do interesse comum. Talvez tivesse a chance de descobrir mais cedo que Sérgio, o vizinho ao lado de quem agora me lembro do nome, é um homem genuinamente gentil e assustado; ou de ter feito mais vezes as unhas na Gerúsia, a vizinha expansiva de baixo que deixa minhas mãos parecidas “com mãos de empresário”.
Mas ganho outras e, no fim, gosto do saldo. Gosto de pensar que sou um bom observador, que tenho um bom ouvido, e que assim não seria se falasse pelas matracas com todos os passantes. Não sei, pode ser um devaneio arrogante. O que sei é que prefiro o não-diálogo ao desinteresse. O encontro fortuito com o desejo real que ilumina dias frios em que talvez tenhamos visto muitos cachorros velhinhos.