Neal Boenzi, The New York Times, 1964
A morte da cachorra que vivia em posto de gasolina
Volto da Vila Madalena e resolvo dar uma volta com os cachorros numa noite em que o frio já não parece tão frio. Lembro e esqueço de jogar fora uma lata de coca-cola sem açúcar que jaz sobre o medidor de luz enquanto coloco as coleiras e penso em irmos até o carrefour da Lins de Vasconcelos e comprar um sanduíche de atum com gosto de triângulo isósceles já que hoje interrompi, já pela manhã, essa transição interminável para o vegetarianismo. Suave é a noite escura e sinto afeto pelas pessoas que ignoro e que tentam, em vão, acariciar meu cachorro vira-lata de cinco anos tão esquivo quanto eu aos cumprimentos de estranhos. Na fila, jovens indecisos olham para micro salames com porcentagem assombrosa de sal que, por alguma razão, me levam a pensar em rótulos de detergente e enlatados dos anos 90. Fiambre, mamãe gostava de comer fiambre e a cachorra Madonna – que chegou em nossa casa minúscula como uma bola de tênis envolta em lã – possivelmente, também, já que naqueles anos indecentes, os cachorros comiam o que comíamos e um mundo de rações parecia uma frivolidade para as famílias que viviam nos subúrbios coloridos em torno da Avenida do Cursino. Penso também que hoje o poeta Ricardo Domeneck publicou, em rede social, o trecho de um poema de Victor Heringer que dizia, “esqueça Gagarin, lembre-se dos cães”.
No retorno do mercado, noto que no posto de gasolina em que abasteço há um painel que, em meio a outros vídeos com promoções de etanol e diesel, anuncia o luto pela morte da cachorra Xuxa, que lá vivia e parecia bem cuidada por seus funcionários. Como Chico, era esquiva, não gostava de cumprimentos, mas, de quando em quando, chegava próximo deles, na dança de cheiros e olhares tão própria dos cães. Eu a olhava, mantendo a distância que era de seu desejo. O desejo dos cães é sagrado.
Um funcionário, cabisbaixo, diz-me que a cachorra fora atropelada do outro lado da rua. Confirmo se ela vivia por lá, meio que já sabendo a resposta e vendo sua cama e pote de água já vazios. “Desde sempre”, diz o frentista, acrescentando ainda – após confirmar com a balconista da conveniência – que ela tinha mais de 10 anos.
Desde sempre. Desde sempre cachorros morrem atropelados. Parece um destino previsível para o cão de um posto de gasolina. Quiçá uma pulsão de morte da cachorra Xuxa, mas não para aqueles homens e mulheres trabalhando melancólicos às vésperas do feriado do corpo de Cristo. "É sempre triste quando morre um cachorro", me diz o frentista e seu olhar parece vazio.
Lembre-se dos cães. Lembre-se. Sempre.
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Seu cachorro morre
atropelado por uma van.
você o acha perto da calçada
e o enterra.
e se sente mal.
se sente mal consigo mesmo,
mas pior por sua filha
porque era o cachorro dela,
que ela amava tanto.
e que ela até ninava
e deixava dormir em sua cama.
você escreve um poema sobre isso.
e o chama de um poema para sua filha,
sobre o cachorro sendo atropelado por uma van
e como você cuidou dele,
e o levou para o bosque
e cavou e cavou para enterrá-lo
e o poema fica tão bom
que você quase se sente feliz do fato
do cachorrinho ter sido atropelado, senão
o poema nunca seria escrito.
então você senta e escreve
um poema sobre escrever um poema
sobre a morte deste cachorro,
mas enquanto você escreve, uma voz
de mulher grita
seu nome, seu primeiro nome,
as duas sílabas,
e seu coração pára.
passa um minuto, você continua escrevendo.
ela grita de novo.
e você se pergunta quanto tempo isso tudo vai durar.
Raymond Carver, em tradução de Caio Christiano