
Massao Nakagami, Flickr
Reminiscências sobre filmes. Reminiscências sobre música
É bonito o filme "Teströl és lélekröl" (Corpo e Alma). Amores eternos, alces e o abismo oculto e tocado das relações humanas sempre acabam comigo.
É preciso compaixão pelos animais para se trabalhar em um frigorífico, diz o personagem Endre, num misto de convicção e repulsa aos ímpetos de paixão e violência de um novo, galante e descarado trabalhador que tanto constrasta com sua persona discreta, quase intelectual, cansada, quase romântica.
Lembro do filme enquanto tomo meu café das sextas na padaria de minha última esquina do Cambuci. Lá pelas tantas, um pequeno punhado de trabalhadores do açougue ao lado chega para tomar café. Dentro dos pequenos corredores da padaria, a cena parece mesmo uma convenção global de açougueiros e, por alguma razão, faz-me também pensar em Kieślowski.
Queria dizer que acordei saudoso do cinema do leste europeu, mas Kaurismäki foi outro que esteve em minhas preces matinais. É só cinema; e seus abismos, amores eternos, cervídeos e canídeos que sempre acabam comigo.
Saio da padaria. Um grupo de senhoras Testemunhas de Jeová ou Neopentecostais atravessam a rua com suas saias e corpos largos. Penso que alcançar o paraíso, de algum modo, deve ser parecido com atravessar uma esquina do Cambuci. Penso em Eduardo Coutinho e, na padaria, todos os açougueiros pedem pães de queijo ou na chapa – com a exceção de um jovem que, em seu ímpeto de violência e paixão, come uma coxinha.
Cuspindo em estranhos
Os vídeos de “Spit on a Stranger” e “Gold Soundz” são minhas memórias fundantes do Pavement. Lembro do rosto angelical e que segue angelical de Mark Ibold, do queixo e dos olhares de soslaio de Stephen Malkmus, um jovem que sabia estar talhado para o sucesso, e da fúria mal sublimada de Scott Kannberg que, junto à aura Ivy League de Malkmus, fazia e faz pairar sobre o Pavement uma fricção à la Buchanan-Gatsby.
Mas é uma fricção dialética e que se condensa: entre os membros do conjunto mais importante da música alternativa dos Estados Unidos; subjetivamente (pois o sucesso, afinal, nunca veio e Malkmus, por exemplo e ora ora, é filho de uma Public Ivy, não de Columbia ou Harvard) e entre o Pavement e seu público.
Nota: Malkmus, no fim das contas, está mais para o Max Fischer do melhor filme de Wes Anderson do que para os personagens de uma aristocracia americana que já nasce decadente e que tão bem foi retratada por Fitzgerald.
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É curioso como muitos dos elementos da lírica do Pavement, quando isolados, nem me interessam lá tanto assim: o cinismo de quem sabe que é mais esperto que seus amigos* (Sabe mesmo? É mesmo? Em que sentido?); a ironia (esse recurso bobo defenestrado com profundidade por Foster Wallace); as construções herméticas que poderiam fazer sentido só para Malkmus (ok, abro aqui alguma exceção ao hermetismo).
Mas Pavement não é um movimento hermético isolado, nem um tiro curto no vazio. Eles são mesmo mesmo uma ilha de complexidades da qual emergem pontes de intersecção entre suas músicas e o universo. É experimento que comunica e está em diálogo – interno, de subjetividades, com o público e com o tempo – e, nesse sentido, consegue o que poucos conseguiram na arte americana de vanguarda: endereçar cartas íntimas para os mortais e deles obter alguma compreensão, ainda que ruidosa.
*Para citar Tim Kinsella, outro que, fossem os caminhos da vida outros, poderia bem ser uma estrela ou um presidente da república