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Lins de Vasconcelos e suas sagradas ceias

  • Foto do escritor: João Barros
    João Barros
  • 22 de jun.
  • 3 min de leitura

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O gigante Gargantua pula de seu cavalo, 1885, Albert Robida


Memórias gastronômicas de uma avenida do Cambuci


Os salgados literários do Yokoyama


Acho que meus olhos marejaram quando mordi a coxinha de massa de batata do Yokoyama pela primeira vez ou assim minha memória se lembra. Nela, na memória e em seu compasso impressionista, os olhos marejam e, desde aquela primeira mordida, nunca mais reclamei de pagar mais de R$ 10,00, R$ 15,00, nos salgados pouco maiores que os das festas de aniversário suburbanas que tanto frequentei na infância. Porque eles eram mágicos, os salgados do Yokoyama, e me pergunto hoje o que havia de tão especial nas mãos daquela família de descendentes japoneses que, como a mim, enfeitiçavam os moradores do Cambuci com coxinhas, pasteis, enroladinhos e esfihas que, de tão perfeitos, pareciam ter sido feitos não naquele balcão – clássico, belo – mas em uma feira vitoriana. Eram salgados literários que poderiam bem ser servidos em um jardim das canções de Dan Treacy. Ou quiçá nas festas mais bonitas tecidas pelo sopro fundamental de Katherine Mansfield. 


A beleza da queda 


Há mesmo algo de literário nessas memórias gastronômicas da Lins de Vasconcelos. Por si só, só mais uma avenida excessiva e barulhenta de São Paulo. Mas lá, mesmo Gargantua se saciaria. Veja a Casa Lins, por exemplo. Se nos últimos anos, o pequeno restaurante árabe decaiu de modo retumbante, ressoando azedo e frio como todos os lugares que minguam até sua falência, há coisa de 5 anos, quando ainda perseguia a glória que resta a pequena burguesia que só de longe pode olhar com espanto e submissão e revolta a nobreza, serviu os melhores charutos de uva e repolho que já comi. Seu quibe cru era ótimo, de um equilíbrio adulto, o quibe frito recheado de verdurinhas, um achado típico do Cambuci, e as esfihas, elegantes toda vida. Talvez haja lugares que nascem para ser isso mesmo e não outra coisa: carregam, trôpegos, uma insustentável prosperidade, só para depois se desmanchar no véu de seu próprio triunfo. Mas há beleza na queda.


Descascando o ridículo, encontrando o real  


Já o True Burguer tinha tudo para dar errado, ou melhor, para não atrair minha empáfia. Tudo nele feria meu senso estético: dos estrangeirismos horrorosos aos meninos jovens com cara de meninos jovens que administravam o estabelecimento; das paredes cinzentas com quadros genéricos de paisagens, cervejas, carros ou sei lá mais quê; da trilha sonora de love metal a televisão ligada em canais de esportes americanos. Mas Deus, como aqueles sanduíches eram bons! Ignoro como seguiram, por todos os dias, seguros de si em meio a toda aquela patuscada, mas os bem digo. Graças a autossuficiência daqueles sanduíches, de uma segurança austera que sempre me seduziu, passei a amar o lugar, dos estrangeirismos aos meninos e, embora preferisse pedir meu Classic and True para comer em casa, vez por outra acabava por lá, esparramado e esperando Godot em uma de suas mesas, com um refrigerante sem açúcar clamando por companhia. Nunca fui um especial entusiasta de suas batatas fritas, esturricadas e temperadas demais para o meu gosto, mas meu entorno, meus afetos, gostavam tanto, que passei a respeitá-las também, pois no True Burguer, quando descascávamos o ridículo, era mesmo tudo verdade. 


Ao menos eu preciso


E na Lins havia de tudo: de casas de massas com covers de Elvis Presley a casas de doces chamadas Mel Prazer cujos bolos me alegravam na época em que eu emulava formigas; de casas chinesas honestas a fast foods de franquias desonestas e outros que as imitavam em um pastiche infinito; de 5 mil pratos feitos a restaurantes que aspiravam os selos de aprovação da Veja São Paulo. 


E havia ainda a Lanches Mansour, cujo maior mistério era saber como permanecia de pé desde os anos 80, já que sempre vazia, ao lado da badaladíssima e superestimada A Chapa. Uma resposta fácil seria o delivery. A mais bonita é a de que precisamos de lugares vazios, ermos, em que tudo se mantenha intacto, em que tudo seja harmônico e melancólico e real – e por isso sublime, e por isso sagrado. Como um quadro de Hopper. Como um dia perfeito para os peixes-banana. Como a vida. Bem, ao menos eu preciso.    

 
 

©2023 por Revista Lenta

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