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Salvação no Savoy

  • Foto do escritor: João Barros
    João Barros
  • 28 de set.
  • 3 min de leitura

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Radial Leste, Flickr


As curvas da compreensão no Parque Savoy, um bairro da Zona Leste de São Paulo


Foi o submundo dos cinemas que permitiu a minha, aparentemente, última fuga. Ribeirão Preto é a cidade mais cruel do universo e só com crueza é possível sobreviver ao conflito de classes, a espera infinita dos ônibus, a violência da pobreza, a ignorância e a feiura e a sedução das novas hordas do liberalismo que nos transformava, a todos nós – os fodidos heróis da classe trabalhadora que comprovam prestígios nos transportes públicos de ambulantes ainda mais marginalizados tentando respirar – em estúpidos e mal agradecidos cheios de rancor, pois não há nada mais terrível para o coração do que promessas desfeitas. Tudo se perdoa se se sobrevive e consegue-se enxergar para que se possa fazer dos remendos a salvação que nos ilumina. Graças a Deus havia o cinema. Tickets não picotados. Vendas não registradas na bomboniere. Pequenos atos de insurreição que costuravam pés de meia. A corrupção milagrosa. Uma viagem para São Paulo em ônibus executivo. Estadia de uma semana em um muquifo a beira da rodoviária, rezando todos os dias para que conseguíssemos um emprego como operadores de telemarketing em companhias de seguro, em telefonias, em postos de atendimento de tvs por assinatura, de hospitais, de centros assistencialistas, de cobrança, de todos os trambiques autorizados pelo Estado que, no fim, sempre atingiam os pobres e a classe média baixa que se embrutecia sem as garantias do bem estar social prometido. Também rezávamos para os que bêbados do quarto ao lado não conseguissem, afinal, arrombar nossa porta e nos assassinar porque tínhamos o azar de carregar rostos arrogantes que não condiziam com nossa posição tão desesperada quanto as deles na macroestrutura econômica da metrópole. No último dia, o primeiro emprego da nova vida. Aluguel de um quarto e cozinha em cortiço com outras quatro moradias que escalavam-se como alpinistas da miséria. Senhora bondosa que doou-nos fogão e até mesa de escritório. Ideia remota de voltar a escrever. Tínhamos colchões. Tínhamos lençóis. Tínhamos um computador portátil. Era o paraíso no inferno de nossas vidas. A salvação no Pq. Savoy. Traumas e sintomas de uma existência não cuidada. Desgarrada. Caminha-se. Sem ninguém. Foda-se. Chega o emprego mais razoável possível dos dias operacionais, da luta cotidiana das vacas magras. Dos dias da sobrevivência em que o Giraffas parecia um restaurante de grife. Exclamações de alegria e emoção na primeira vez em que vejo mil reais na minha conta. Mudança para um apartamento em Itaquera com quarto, sala, cozinha, banheiro em que vizinhos tinham carros e até ambições. Havia uma padaria em frente ao prédio. Vinte e quatro horas de massas à disposição para aguentar o tranco. Vinte e quatro ou vinte e cinco minutos de ônibus até o metrô. Comíamos também no Habbib's. No Ragazzo. No Giraffas. Vinte e quatro ou vinte e cinco minutos de ônibus até o metrô. Comíamos também no Habbib's. No Ragazzo. No Giraffas. Era possível comer, ler alguma coisa, escrever alguma coisa, estudar alguma coisa. Veio a bolsa na faculdade de jornalismo antes do fim de tudo. Veio o estágio em assessoria de imprensa na Faria Lima. Veio o choque com a elite progressista e seu desprezo pelos pobres e amor à ideia de pobreza. Rancor. Estupidez. Salvação no Savoy e fendas psicanalíticas em Itaquera. O início da longa curva. Do processo. Da compreensão. Dor com o conflito diante daqueles que já enxergavam que é possível assumir o fluxo crítico sem romper, destruir e destruir-se. Paciência. Era o início da longa curva e ela pode bem trazer consigo, antes, a “sistematização dos sintomas”. Que assim seja. Estamos vivos. 


Volto ao Pq. Savoy a cada dois anos para votar em uma eleição perdida – ou pela falência da democracia burguesa ou pela inépcia da esquerda possível. Bem, acho que voltava. Agora sou eu que tenho apartamento e carro e ambições em meio às elites. Velhinho, com ranhuras, na construção wabi-sabi de minha ascensão socioeconômica, enquanto o Pq. Savoy fica cada vez mais distante. 


Distante e tão longe e tão perto para aqueles que não têm a chance de vacilar. O Pq. Savoy foi o farol de salvação. O Pq. Savoy é o farol que nos espreita. 


Na última eleição, passei na lanchonete ao lado do colégio em que voto. Olhares desconfiados. Novamente estrangeiro. Novamente sem reconhecer rostos e sem que eles me reconheçam.


Quando lavava minhas mãos, antes de sair talvez para sempre, um cachorro entra e bebe água da latrina. Compreendo tudo naqueles segundos.

 
 

©2023 por Revista Lenta

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