International Olympic Committee
Uma retrospectiva pessoal de 2023 a partir de três pequenos artigos futebolísticos
A copa de Messi
Nunca gostei muito de Galvão Bueno narrando jogos do Brasil. Emocional, colérico, perdia-se entre a paixão pelo time e a precisão jornalística que sempre o colocou um nível acima nas narrações esportivas. Mas a emoção foi sua marca de estilo e, em seus pecados pelo excesso, era também capaz de momentos de síntese brilhantes, como em um instante de iluminação de um escritor beatnik temerário. “não fui um chute, foi um desespero”, “virou passeio”, “nós também já vivemos esses momentos”. Galvão Bueno funcionava bem na dor.
Dor que, como bem resumiu Ana Thaís Matos, forjou a trajetória de Messi na seleção argentina – acusado de não se doar em campo, à sombra de um mito inigualável enquanto mito e suspeito sobre sua própria identidade enquanto argentino.
Argentinos que amam o futebol com o excesso das emoções coléricas e que agora trazem de volta a taça da copa para o seu povo na copa das despedidas. “A história é a história e não se pode mexer na história”, disse Galvão, em uma narração digna de sua própria história de uma partida digna de Messi, o gênio tímido argentino, inigualável enquanto artífice da história do futebol de nossos tempos.
“Perdão pela falha”, disse Galvão no terceiro gol de Mbappe, que colocou todas as armas em campo e fez de tudo para mexer na história com seu ímpeto altivo. Somos feitos de falhas, não há o que se perdoar. Mas somos também feitos de justiça sublime. Justiça sublime que sabia, como Galvão também sabia e como todos nós também sabíamos que há copas que tem dono, que “essa era a copa de Messi”.
Do futebol e dos seus estigmas
"O futebol é muito duro porque ele não reconhece ninguém, nunca, pelos seus méritos. Você pode fazer muita coisa para o clube, mas você tem algumas atuações um pouco abaixo e todo mundo esquece o que você fez. O Romero sempre foi esse jogador no Corinthians, um jogador exemplar taticamente. Sempre se doou e sempre fez gols.”
A reflexão de Mano Menezes, após a heroica vitória do Corinthians sobre o Grêmio neste domingo em Porto Alegre não é apenas verdadeira, é fundante e necessária. O futebol, com sua verve infinita que gera paixões e impulsos, também é primorosa em marcar atletas com uma letra escarlate cuja pintura, contornada pelas mãos de uma mídia esportiva pobre – na qual mesmo jornalistas genuínos e talentosos incorrem em simplismos apaixonados –, é de correção difícil, quando não uma tarefa para Hércules ou Atena.
O próprio Mano Menezes foi e é malhado por essas tintas do escárnio preguiçoso. Em 2014, ano de reformulação de um Corinthians pós-Tite, o time alcança a quarta colocação do Campeonato Brasileiro. Vinha de uma décima posição. Não ganhou títulos, sofreu a pressão do canalhismo rodriguiano – com a notável exceção, na grande imprensa, do sempre notável, Paulo Calçade – caiu, mas formou a base do time que encantou o país no ano seguinte, com o retorno do histórico Adenor Leonardo Bachi, que hoje tenta reconstruir o brio do Flamengo em meio às suas tantas complexidades.
Calejado e inteligente que é, Mano Menezes, cada vez mais lembra não um estoico, mas uma espécie de existencialista indiferente, um pirronista navegando calmamente nos mares revoltos, absurdos, cruéis e divinos do futebol.
Enquanto isso, Ángel Romero – um jogador que, mal completados seus anos de formação em uma liga de nível técnico inferior, chegou ao Corinthians com um amor pelo clube digno dos amantes eternos – segue entregando sua alma por um time, uma torcida e uma nação futebolística que, por vezes, não reconhecem seu talento e competência.
Como um estoico, Romero continuamente carrega e arranca de si a letra escarlate do escárnio. Mais do que isso, Romero matiza a história de um clube que ama, o vermelho e as cores da bandeira paraguaia.
O futebol potiguar sangra; o vermelho é belo
Mesmo com o ABC tendo uma torcida organizada que se concentrava em Neópolis, bairro onde morei durante os anos erráticos da filosofia na UFRN, o América de Natal sempre foi meu time no Rio Grande do Norte. Devo a identificação às duas últimas temporadas em que o time permaneceu na Série A nos anos 90; anos nos quais acompanhei os jogos do América na TV aberta em subúrbios da Zona Sul de São Paulo.
1997 foi um ano bom. Time de pratas da casa e destaque para Helinho, maior artilheiro da história do América e que fazia gols até de braço engessado, como em algumas partidas daqueles anos. “Helinho é matador", gritava a torcida. Era mesmo; e o time terminou numa honrosa 16º posição nos tempos do brasileirão de 24 equipes.
1998. Esperança de consolidação no cenário do futebol nacional. Contrataram até o Paulinho Kobayashi – que depois virou ídolo do América em divisões menores. A esperança deixa o gosto da fé mais amargo e a lanterna foi dolorosa naqueles cômodos de estar de um sobrado na Cursino, apesar dos fogos na Zona Sul e da alegria pelo título do Corinthians.
Na última partida em que o América tinha ainda remotas chances de permanecer na Série A, 2 x 0 na etapa inicial contra o Santos de Narciso, recém-convocado pela seleção. Vadia, a esperança, correndo de novo feito criança tola e logo afogada naquele outubro, mês mais chuvoso do ano, com o empate do Santos no início do segundo tempo. Acabou assim, mas Narciso ainda perdeu dois pênaltis, talvez inebriado pelo reflexo de sua grandiosidade ante aquele mar de errantes do futebol.
O tempo passa. O América se encolhe todo todo até chegar a série D, última divisão do futebol brasileiro. Seis anos de um calvário que se encerrou em 2022. Nas quartas de final – que definiriam os 4 classificados para a série c do ano que vem – perde o primeiro jogo para o Caxias por 1 x 0 e, na segunda partida, perdia de novo por 1 x 0 até os 20 minutos do segundo tempo. Mas nem só na derrota reside a beleza: em menos de meia hora o time fez 3 gols e ainda terminou depois, muito que bem, campeão da Série D.
2022 foi um bom ano para o futebol potiguar. O ABC também subiu para a segundona e está disputando a final da Série C contra o Mirassol. Desejo sorte e até torço discretamente, mas de alvinegro já tenho o Corinthians.
O América não. O América é meu time vermelho.
Post scriptum
2023, o ano em que o país voltou minimamente a respirar depois de 4 anos afogado nas cores kitsch de um suposto patriotismo bruto e vulgar – patriotismo que, segundo Mencken, é o último refúgio dos canalhas – foi também o ano de nova derrocada dos errantes do futebol potiguar, que sangra. Mas o vermelho do América segue belo, respira e o “coração do povo” anima seu sangue vadio.
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