top of page
João Barros

O curioso e estranho voo dos dragões


PxHere


Será que ao abandonarmos a arte fantástica não nos tornamos conservadores da imaginação e do olhar?


É muito fácil desprezar o fantástico, o épico, o voo dos dragões e o simbolismo das espadas apontadas em direção ao céu. Há, afinal, uma camada escapista e, em seu limite, ridícula nessa busca grandiloquente por uma realidade outra que encontra eco no pastiche pós-moderno do cosplay; fenômeno que, no entanto, que mais é senão uma versão contemporânea das festas a fantasia, dos bailes de máscara, numa espécie de carnaval mais ingênuo?


Fácil, mas talvez pobre, no sentido de que ao abrir mão do fantástico – inclusive do que nele há ou pode haver de potencialmente risível – talvez estejamos abrindo mão do impulso criativo infantil, ele também profundamente imagético, excêntrico, visionário e essencialmente irrealista.


Esse pretenso processo de amadurecimento estético, por sua vez, talvez afete nossa capacidade de observar a beleza – que é, sobretudo, aquilo que não se vê ou o que permanece para além do fenômeno que se vê. E também de construir utopias – literárias, políticas, filosóficas; raciocínios sutis e simbólicos, muito mais ligados à esfera do deleite fantasmagórico da primeira infância do que do pragmatismo das filas de banco. 


A hipótese é: será que ao abandonarmos o curioso e estranho voo dos dragões e a arte fantástica não nos tornamos conservadores da imaginação e do olhar?


A longa e estranha noite


No fascinante The long night, de Game Of Thrones, a fantasia encontra o sublime. Há um misto de sonho e pesadelo infantis que perpassam todo o episódio, conduzido como que em coreografia aparentemente caótica, mas que, na verdade, encerra em si todo o desejo do fantástico: alcançar e ordenar o impossível; equilibrar as forças do simbólico e do simbólico trazer sentido; honrar e sacralizar a existência, o fim e o começo.


Flickr


Visualmente, The long night é de uma complexidade atordoante, ao mesmo tempo em que explora recursos hipnóticos de repetição dignos do episódio Part 8 (Gotta light?), de Twin Peaks.


É curioso que uma série como Game of Thrones tenha conseguido tanto. Basicamente referencial, sua originalidade poderia simplesmente ter sido a de acrescentar um véu de luxúria e de sexualidade explícita – em seus píncaros, potencialmente transgressor – à tradição de Tolkien. Mais um exemplo de como os amantes de um gênero podem, a partir mesmo desse amor, construir obras-primas.


O mundo do eterno


O mundo do cinema e da arte épica (sobretudo em suas vertentes fantásticas) é o mundo do eterno, do simbólico, do mito, do sistema que tudo abarca, daquilo que permanece, mas também daquilo que se constrói, que se imagina, a partir do símbolo. Nesse sentido, ele lembra um corpo estranho à práxis da sociedade líquida em que o eterno se desmancha.   


A fantasia e a imaginação política


Ao mesmo tempo, talvez ele seja uma lembrança: de que é possível imaginar realidades outras, de que não há fim da história e de que a utopia não está morta. Como o mundo fantástico – filho que é do mundo simbólico – a utopia não morre.

bottom of page