Lívia Serri Francoio
"Não existe razão para esperarmos que uma IA genérica seja motivada por amor, ódio, orgulho ou qualquer outro sentimento comum aos humanos", Nick Bostrom, Superinteligência: Caminhos, perigos, estratégias
Há algo patológico ou alguma raiz viciante na forma como necessidades são criadas à medida que novas tecnologias surgem na sociedade?
Formulo essa questão enquanto observo de relance a placa do Grupo de Alcoólicos Anônimos da Paróquia São Joaquim, em frente a minha casa e tento, com a dificuldade que me é comum em introduções, dar início a um artigo para essa revista. Um artigo que, por sua vez, resuma minha pesquisa sobre inteligência artificial e produção midiática na contemporaneidade para uma disciplina de pós-graduação que venho fazendo com a dificuldade que me é comum nos dias frenéticos da cidade do laboro frenético.
Há 6 meses ou menos, tinha uma ideia muito vaga do que era o ChatGPT – e essa ideia vaga só estava aqui porque trabalho com economia e as previsões entusiasmadas sobre a forma como a automação e a inteligência artificial iriam transformar o mercado já vinham sendo discutidas desde, pelo menos, uns bons 10 anos.
Claro que há algo de meramente publicitário nesse entusiasmo: enquanto empresas, startups e aspirantes a bilionários cantavam as loas disruptivas da robotização; cronogramas de pautas, cálculos matemáticos e planejamentos seguiam me sendo enviados através de planilhas do Excel ou apresentações do Powerpoint claramente produzidas por humanos que, não raro, pareciam estar ainda se familiarizando com as ferramentas primordiais do Microsoft Office.
Mas existe também o momento de ruptura. O momento em que uma tecnologia, de tão banal e presente, deixa de ser discutida. E, de algum modo, a reflexão sobre os impactos daquela inovação em nossas vidas, psiques, na forma como nos relacionamos e talvez como sentimos a própria experiência de existir fica a cargo de acadêmicos, filósofos, cientistas sociais.
Tais impactos não passaram despercebidos por um sem número de pensadores e Neil Postman, em Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia, resumiu bem essa questão quando afirma que "as novas tecnologias mudam aquilo que entendemos como “conhecimento” e “verdade”; elas alteram hábitos de pensamento profundamente enraizados, que dão a uma cultura seu senso de como é o mundo – um senso do que é a ordem natural das coisas, do que é sensato, do que é necessário, do que é inevitável, do que é real."
Mas, em se tratando da inteligência artificial e correndo o risco de ser taxado de ludista – qual o problema com os ludistas, afinal? – essa talvez seja uma reflexão que tenha de se expandir para além dos limites da academia em um ritmo mais urgente.
E por quê? Porque a inteligência artificial talvez seja, de fato, a última fronteira, a última invenção humana – tomando aqui uma acepção do filósofo sueco Nick Bostrom. Esse "talvez" já não é por demais suficiente, no mínimo, para alguma parcimônia na forma como cientistas e investidores se aventuram rumo a uma tecnologia de potencial e impactos incalculados?
As fronteiras da cultura
Impactos incalculados que ensejam que pensemos sobre a relação da inteligência artificial com produtos culturais.
Por mais absurdo que me pareça inicialmente o interesse em criações não humanas nos terrenos da arte, da comunicação e das manifestações do pensamento – qual interesse pode despertar (para além de um interesse no exótico) a matéria cultural desprovida de subjetividade ou interioridade? – ele, pelo visto, existe e afeta toda uma cadeia de profissionais e a forma como passamos a compreender a cultura.
Mas há algo de positivo nessa nova compreensão? O negativo salta como evidente quando pensamos, por exemplo, na perda do elemento crítico – "a cultura só é verdadeira quando implicitamente crítica", disse Adorno em Crítica Cultural e Sociedade. E não há crítica fora da interioridade humana, há programação algorítmica.
As possibilidades de hibridismo – de criações artístico-culturais entre humanos e máquinas – pode (e está se abrindo) como uma possibilidade positiva nesse contexto presente. Mas esse caminho não inviabiliza a análise sobre os riscos da inteligência artificial e sobre sua consequente necessidade de controle que, aliás, já vem sendo conduzida (com mais ênfase, sobretudo, em países de economia centralizada).
Primeiro porque o estágio atual da inteligência artificial ainda é um rascunho, um susto pálido diante do que almejam big techs e entusiastas endinheirados. E em segundo lugar, porque uma criação híbrida é ainda uma criação que tem o ser humano e não o ser maquínico como condutor de uma ideia e de um sonho.
Produzido por um humano
Domínio público
Marx, como seu dom premonitório, anteviu o papel da tecnologia nos processos produtivos. E, no cenário atual da corrida incessante pelo novo, há uma necessidade de ponderação que realmente demanda controle e a criação de caminhos para que as ferramentas de inteligência artificial funcionem, de fato, como "órgãos do cérebro humano criados pela mão humana" – Marx, em Grundrisse: manuscritos econômicos de 1957-58 – e não como algo que selará destinos.
No âmbito do controle, há uma clara urgência de mudanças estruturais no modelo econômico global que se sustenta a partir de crises, obsolescências e rupturas que, como é possível perceber, invadem outros tecidos da sociedade, incluindo a cultura.
No terreno das estratégias, muitas alternativas podem ser exploradas – mesmo considerando o cenário atual dos arroubos do capitalismo tardio. Na reflexão da pesquisa que cito na introdução deste artigo, há a proposta da criação de um certificado voltado para a valorização de produtos culturais humanos.
Talvez, enquanto produtores culturais, viremos um nicho. Talvez toda essa elucubração seja um alarde.
Se virarmos nicho, ações propositivas que valorizem nossa subjetividade e interioridade serão uma das respostas possíveis contra "uma mudança sem direção ou sem um rumo estabelecido de antemão" – Bauman, em A cultura no mundo líquido moderno – que a inteligência artificial propicia ou faz temer.
E, se tudo for um alarde, o alarde é também uma forma de pressão contra a pressão que nos é imposta. Abracemos o ludismo.
Kommentare