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Fazia um sol bobo na manhã em que soube que o Rogério, balconista que me serviu café por três anos na padaria que eu frequentava quase todas as manhãs depois que passei a morar no Cambuci, havia falecido. O Mineiro, chapeiro que assumira de vez o posto por lá depois da saída do Bahia, adotou um tom solene quando me deu a notícia.
– É difícil até para mim falar. O Rogério não está mais aqui conosco.
– Como assim? Ele mudou de emprego? – Perguntei, meio distante, sem captar de cara a tentativa de demonstrar respeito aos mortos daquele homenzarrão de rosto redondo, olhos claros e que me fazia pensar em seguranças e em lutadores gentis e em professores de educação física tímidos com alguma disposição para fazer com que alunos raquíticos – e não só os atléticos – se interessassem por futebol e atividades espartanas, movidos por livros de autodesenvolvimento e biografias motivacionais que liam uma ou duas vezes por ano e que falavam de esportes e de conceitos genéricos como a liderança com ar messiânico.
– Que fosse isso! O Rogério faleceu – disse, e então me olhou como uma leve angústia que parecia, ao mesmo tempo, sincera e protocolar.
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Há 4, 5 anos, mal sabia da existência do Cambuci e de seus pequenos comércios, furdunços e cheiros que anseiam em vão pela permanência desde o início da Lins de Vasconcelos, ainda nas bandas da Vila Mariana, até desembocarem no Largo. Hoje o bairro está embrenhado em minha memória que se constrói no presente – passeios com os cachorros, meia dúzia das visitas que recebo na minha casa em uma esquina da Lacerda Franco, vista de frente do quarto de dormir para o teto que lembra um sonho gótico da Paróquia São Joaquim, idas a Casa Lins, ao Yokoyama, ao bar a Juriti – e com os reflexos de um passado recente composto também pela Santa Isabel, a padaria do balconista morto.
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O sol é quase sempre bobo nas manhãs ensolaradas desse bairro cheio de idosos; de casas para locação administradas, acredito, pelos filhos dos velhos que morreram e que hoje devem viver em bairros mais glamourosos; de descendentes de japoneses de Okinawa; um bairro cheio do mesmo ar conservador das famílias de classe média paulistanas, pincelado pelo progressismo de meia dúzia de professores, artistas anônimos, de adultos na casa dos 30 anos sem dinheiro suficiente para alugar apartamentos na Vila Mariana, e pela urgência e desengano dos moradores de rua. Um sol bobo como o sol de um pano de prato ou de uma capa de caderno da Tilibra com fotos de bancos de imagem retratando adolescentes com caras de entusiasmo-de-cruzeiro-marítimo em contextos supostamente joviais.
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Nuvens gordas cobriam o sol bobo e, pelo que consigo lembrar, pedi um pingado em copo americano com uma esfiha de calabresa para o Mineiro – que era o que eu quase sempre pedia e que já não estavam tão bons como costumavam ser. De algum modo, a morte do Rogério era um símbolo da mudança da Santa Isabel e, em maior instância, do próprio trânsito de transformações que também acomete o Cambuci, ainda que o bairro caminhe razoavelmente e ordenadamente mais devagar do que o ritmo tradicional de São Paulo. Seu ritmo lembra o azougue sonolento das feiras, dos pequenos comércios, das praças, das pequenas reformas.
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Rogério tinha a voz calma e a elegância dos antigos garçons lacônicos. Além disso, memorizava em poucos encontros seus pedidos e nunca ninguém acertou a temperatura e a cor de um pingado segundo meu gosto como ele. Caprichos, mas sempre admirei pessoas discretas que conseguiam, ao mesmo tempo, demonstrar interesse genuíno sem desviarem a atenção de suas almas.
O que sabia daquele senhor de olhos levemente sardônicos que superficialmente contrastavam com sua personalidade: que era corintiano como eu, que tinha um bom volume de cabelos lisos e a tatuagem de uma âncora. Possivelmente havia sido bonito, a julgar pelos seus traços que escondiam algum charme remoto. De fato, não era feio. De rosto rechonchudo, lembrava-me vagamente o Alec Baldwin – mas essa associação é possivelmente questionável, já que muitas pessoas me lembram o Alec Baldwin.
Sua tatuagem de âncora – daquela espécie de azul-esverdeado-cor-de-bolor das tatuagens antigas e que, não fossem tão caricatas, poderiam ser confundidas com sinais de nascença – era o que mais me fascinava em sua aparência. Talvez porque não esperasse, a partir de minhas impressões ligeiras, que Rogério fosse ter uma tatuagem. Sim, mas há também o fato de que a âncora fazia-me pensar em aventuras, em Ernest Hemingway, em uma vida pregressa de boemia ou de serviços à marinha ou mesmo breves passagens pela prisão onde obviamente fora respeitado e deixado em paz. Pensava também nas poucas viagens que eu mesmo fiz, em minhas caminhadas em Puerto Madero, no sol avassalador do interior do Rio Grande do Norte, em águas vivas. Nunca conversamos sobre sua tatuagem porque entendia sua timidez e tentava não ser invasivo. Também porque, possivelmente, o enigma era mais interessante que a vida.
Rogério foi a pessoa mais próxima em minha vida que morreu de Covid-19. Em três anos, em nossas quase monossilábicas conversas sobre o Corinthians ou sobre o pequeno dia a dia do encanto repetitivo da Santa Isabel e do Cambuci, compartilhamos a compreensão dos calados.
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Durante o ápice da pandemia, achei que a Santa Isabel ia fechar. Sobreviveu e, para competir com a unidade de uma grande rede de padarias aberta numa outra esquina da avenida em que moro, assumiu seus próprios ares de grandeza industrial. Fez reforma. Mudou receitas. Mudou equipes.
O Bahia – que fazia sempre dois turnos e, quando saía da padaria, tarde da noite, ia treinar musculação na SmartFit –, abriu um delivery de lanches. O Junior – garçom divertido de olhos alucinados, virou entregador no iFood. O Ceará – que tentou me vender um Mizuno uma vez e vivia brigando com o Bahia – saiu brigado da Santa Isabel. Soube que a Eliane ainda está lá, mas, da última vez que conversamos, disse que ia virar motorista do Uber.
E o Rogério está morto. Sua morte foi, sim, um símbolo da transformação da padaria que por um momento esteve muito presente em minha vida, mas é também uma lembrança daquilo que perdemos e que poderíamos não ter perdido.
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É verão. O sol hoje não é bobo – é agressivo como o verão. Há meses não vou a Santa Isabel.
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